sexta-feira, 23 de agosto de 2013

JOSÉ AUGUSTO CARVALHO - ENSAIO





DICIONÁRIOS NÃO SE ENTENDEM

 

 

            Os elementos significativos que fazem parte da rede de relações chamada língua se chamam formas.  Formas livres são as que se podem pronunciar isoladamente, constituindo-se  num enunciado completo, como livro, caneta, pasta. Formas presas são as que se associam às formas livres e não se podem pronunciar separadamente, como o {–s} final de livros, que significa “mais de um”, ou como as terminações verbais. Formas dependentes são os elementos átonos que dependem de outro vocábulo, mas não se prendem diretamente a ele, como os pronomes pessoais átonos que podem pronunciar-se antes, depois ou no meio do verbo:   eu te amo, amo-te, amar-te-ei.

                As formas livres, presas ou dependentes se chamam também morfemas. Os morfemas são representados entre chaves. Assim, {-a} é o morfema do feminino.  Os sufixos e os prefixos são morfemas, são formas presas. O que caracteriza o morfema, ainda que não possa ser pronunciado isoladamente, como o { –s} que marca o plural, é o fato de ele ser dotado de significação.  Há línguas em que, além do prefixo (que se acrescenta no início de uma forma base) e do sufixo (que se acrescenta no fim de uma forma base), há o infixo, que se acrescenta no meio da palavra base. Na língua iana ou ianam (do grupo ianomâmi), por exemplo, o infixo {-ru} indica plural: kuwi (curandeiro) – kuruwi (curandeiros). Em mísquito, língua indígena do Panamá, a noção de posse é indicada por infixos: napa (dente) – naipa (meu dente) -  nampa (teu dente).

            Chama-se vogal ou consoante de ligação o fonema que se acrescenta entre a forma base e o sufixo para facilitar a pronúncia. Se acrescentamos o sufixo {–eira} à forma base licor, temos licoreira. Se, no entanto, à palavra café acrescentarmos o sufixo {–eira}, teremos de pôr um t antes: cafeteira. O t não é um morfema, porque não tem significado, e sua função é apenas fônica. Da mesma forma, se acrescentarmos a forma cultura à forma café, teremos cafeicultura. A vogal i tem apenas função de eufonia, não tem significação.

            O dicionário Aurélio, no verbete próprio, define infixo adequadamente como um afixo (morfema) interno, mas exemplifica com as consoantes de ligação de chaleira e motorneiro. Ora, as consoantes de ligação não podem ser infixos, porque não são morfemas, não têm significação. Felizmente, o Houaiss não endossa essa lição. Não existe infixo em português.

            No verbete bege, o Aurélio declara que se trata um adjetivo invariável, isto é, sem flexão de gênero ou de número. No entanto, o Aurélio contradiz a própria lição do seu verbete, ao dar um exemplo, retirado de Os barões da Candeia, de Ana Elisa Gregori, em que bege aparece flexionado no plural: “As meias grossas, beges, protegem as pernas brancas.”

No verbete explodir, o Aurélio ensina que se trata de um verbo defectivo, a que falta a 1ª pessoa do presente do indicativo e, consequentemente, todo o presente do subjuntivo. No entanto, ao lado dessa lição, no mesmo verbete, aparece a conjugação completa do verbo explodir, com todas as formas que o dicionário declara inexistentes!

O Houaiss, no verbete gol, informa que o plural gols é um “barbarismo consagrado pelo uso” e ensina que os plurais adequados são goles (ô), golos (ô) e gois. Golos é usado em Portugal, mas gois só existe na cabeça dos que participaram da elaboração do dicionário. Todas as palavras oxítonas terminadas em –ol têm a vogal aberta, no singular e no plural: sol, anzol, terçol, lençol, futebol. Assim, a palavra gol, com vogal fechada, não é barbarismo, mas apenas a adaptação gráfica do goal inglês. O plural gols é legítimo, porque continua sendo a palavra inglesa adaptada graficamente. Gois, com vogal fechada, é que é barbarismo, uma vez que, se fosse palavra portuguesa, teria de ter a vogal aberta, como a palavra rol, com a vogal aberta, oriunda do francês rôle, com vogal fechada. Rol é palavra legitimamente portuguesa, porque tem a vogal aberta.

Todos os minidicionários (do Houaiss, do Aurélio, de Evanildo Bechara) cometem o mesmo erro na segmentação da palavra parapsicologia. Esses dicionários separam assim as sílabas: pa-ra-psi... Ora, não existe hífen em parapsicologia. Portanto, a separação silábica tem de ser a seguinte: pa-rap-si... (cf.: si-lep-se; lap-so; co-lap-so; rap-só-dia, etc., em que as consoantes ps aparecem em sílabas distintas).

No verbete adequar, o Dicionário Aurélio informa que se trata de um verbo defectivo,  conjugável apenas nas formas arrizotônicas, isto é, nas formas em que a acentuação tônica recai nas desinências e não na raiz. Assim, o dicionário conjuga o verbo adequar apenas com duas formas no presente do indicativo: nós adequamos, vós adequais. O Dicionário Houaiss, contrariando bons manuais de conjugação e boas gramáticas, conjuga o verbo adequar em todos os tempos e pessoas: eu adéquo, tu adéquas, etc. Domingos Paschoal Cegalla, em seu Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, s.v. adequar, adequar-se), ensina que, se adequar não fosse defectivo, sua conjugação deveria ser como a do verbo recuar, com a acentuação tônica no U. E conclui: “Não existem as formas adéqua, adéquam, com e tônico. 

            O Aurélio registra o verbete afro como adjetivo, sem indicação de gênero, o que pressupõe tratar-se de adjetivo variável, ou como substantivo  apenas masculino. O Houaiss registra afro como adjetivo e substantivo apenas masculino, e exemplifica: moda afro, cabelo afro, comidas afro (apesar de registrar o plural afros, para designar antigo povo da África).  Essa é  a orientação espúria do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Volp) que também registra afro como adjetivo e substantivo apenas masculino (portanto invariável). O Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa registra afro tanto como adjetivo quanto como substantivo variável (afro, afra). O Dicionário de Domingos Paschoal Cegalla, acima mencionado, registra o verbete afro também como adjetivo e substantivo, flexionado, com os seguintes exemplos: carnaval afro, ritos afros, músicas afras.

            A propósito do Volp, somos todos reféns de suas imprecisões ou inadequações, sobretudo no que diz respeito ao emprego do hífen, que é um verdadeiro samba do crioulo doido. Nos pares abaixo, de formação idêntica, apenas o primeiro leva hífen; e o segundo, não. Vejamos: pé-de-meia, pé de moleque; para-choque, paraquedas; perde-ganha, vaivém; cachorro-quente, elefante branco (coisa incômoda); infantojuvenil, maníaco-depressivo; ano-novo, ano velho; norma-padrão, desvio padrão; bom-senso, bom gosto; pronto-socorro, pronto atendimento; carne-seca, carne viva... Qual é a lógica? Todas as gramáticas e o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, ensinam que azul-ferrete, como adjetivo, é invariável em gênero e número; como substantivo, só o primeiro elemento se flexiona: azuis-ferrete. Mas neste ponto o Volp inova ao admitir também o plural dos dois elementos, quando a palavra for empregada como substantivo: azuis-ferretes.

Siglas se leem sempre letra por letra e todas se escrevem com maiúsculas: PMDB, PTB, UFRJ, CPMF, etc. Acrônimos, ao contrário, se leem como verdadeiros substantivos da língua (neologismos): se o substantivo é próprio, apenas a primeira letra é maiúscula: Otan, Nasa, Vasp, Ufes, Bradesco, Petrobras, Volp, etc. Se o substantivo é comum, todas as letras são minúsculas: radar (radio detecting and ranging), sonar (sound navigating and ranging), laser (light amplification by stimulated emission of radiation), aids ou sida (síndrome da imunodeficiência adquirida), etc. Se o acrônimo tem três letras, todas se escrevem em versal, mesmo que não sejam nomes próprios: ONU, TAP (Transportes Aéreos Portugueses), ECA (Escola de Comunicação e Artes), LER (lesão por esforço repetido), etc.. Os dicionários definem adequadamente o que é sigla e o que é acrônimo, mas erram nos verbetes que representam acrônimos ou siglas. O Aurélio, embora registre aids, com minúsculas, registra SIDA e UFES; O Houaiss registra apenas sida, com minúsculas, mas, embora defina acrônimo e sigla adequadamente, no verbete sigla registra Petrobrás entre outros exemplos.

A expressão latina statu quo é parte da expressão maior in statu quo ante, que significa “no estado em que (estava) antes”. O correto é statu quo, sem o s final porque se trata do ablativo, como ensina Paulo Rónai no seu belo livro Não perca o seu latim (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, com exemplo de Carlos Drummond de Andrade).. Os dicionários, contudo, só registram a forma inadequada “status quo”. O nominativo, status, com s final, só se usa isoladamente e significa a posição ou a situação de um indivíduo num grupo. Não é de estranhar essa lição esdrúxula, já que o latim é frequentemente mal-empregado na linguagem jurídica. Na literatura jurídica, “a expressão de cujus” é utilizada como sinônimo de  “testador”.O Houaiss e o Aurélio dão-na como sinônimo de “falecido”. Trata-se de parte da frase “de cujus successione agitur”, isto é, “(aquele) de cuja sucessão se trata”. Ora, em latim, cujus é genitivo do pronome relativo qui. Nunca foi substantivo comum. Infelizmente, já é expressão consagrada pela tradição e faz parte da metalinguagem jurídica...

                                    

 

(José Augusto Carvalho é mestre em Linguística pela Unicamp, doutor em Letras pela USP, e autor de um Pequeno Manual de Pontuação em Português (1ª edição, Bom Texto, do Rio de Janeiro, 2010, 2ª edição,  Thesaurus, de Brasília, 2013) e de uma Gramática Superior da Língua Portuguesa (1ª edição, Univ. Federal do ES,  2007; 2ª edição, Thesaurus, de Brasília,  2011)