segunda-feira, 26 de novembro de 2012

POEMA


(Marc Chagall)
 
 
 

POEMA PARA O SONO DE MARTA
 
As razões de quem ama
não são argumentos.
Estratagemas para sentimentos
no amor não se pode tê-los.
As evidências de quem ama
são fatos secundários
como as alamedas
no mês de maio.
 
Os amantes sabem
do improviso
– flor casual do destino.
 
É possível que o amor seja
mesmo sem a convicção dos teoremas.
Leve – como no sono se propaga
o sonho em Marta.
 
 
 
 
 
 
 

domingo, 11 de novembro de 2012

ROMÉRIO RÔMULO: POEMA


(Lasar Segall)
 
 
 

sal, 1

morrer é um traço musical
desmanche da carne,toque de instrumento
navio aportado, soco duro.
a vida assombrada é um fragmento
emergido da terra, uma fogueira
onde a terra sem vida é uma beira
emoção do que é doce e virulento.
navio aportado, soco duro
o corpo me carrega em sal impuro.


ROMÉRIO RÔMULO: POEMA

 
(Leonardo da Vinci)
 
 

os mestres, os vandálicos, os loucos

1.
os mestres, os vandálicos, os loucos
não são os todos, e nem são muito poucos.
seus edredons são peles de camelos
suas carnes se respaldam em novelos
seus ovos são férteis nutrientes
a desmanchar e recozer os dentes.
quantas manhãs os vi a trovejar
os seus bafejos chegados d’ além mar.


2.
seus atos dominados por bobinas
se atropelam em todas as esquinas.

ROMÉRIO RÔMULO: POEMA

 
(Fra. Angélico)
 
 

quanto de mim vale um anjo

quanto de mim vale um anjo
se cada vazio oculto
se traduz por um diabo
na alma cheia de dentes
meus cavalos e pedreiras
minhas glândulas atávicas
os umbrais da minha sede
prontamente se revelam
uns bois de olhos sagrados
me contemplam com seu dorso
de pura dureza vista
nos antanhos já bebidos
são anjos, demônios, roncos
de uma pele atrevida
já pisada de histórias
e pratas não semeadas
quantos deuses me engolem
quantas almas me sufragam
se a avó em ato louco
pôs suas asas sobre mim?

ROMÉRIO RÔMULO: POEMA


(Guignard)
 
 


vila, 1

esta vila é uma verdade
plena de matos e pedras
rica de ouros e águas
espraiados pelos corpos
que ontem se viram escravos
nos atos mais comezinhos
onde cada ponte leva
onde cada água afunda
a memória dos algozes
do ouro por sucumbir
em lanhos, facas, machados
nos próprios ossos das gentes?
quanta carne se abriu
nos cantos desta cidade
que a fizeram roer ossos
e quebrar-se pelas pedras
entremeadas, devotas
com verdes caldos de lama?
o seu corpo é do diabo
a sua alma é fundida!

 

 

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

ANTÔNIO ADRIANO MEDEIROS: POEMA


 
 
UM ENCONTRO MUITO ESTRANHO


Para José N. Félix


Pretendia anexar
ao presente relatório
um atestado de saúde
que peguei no sanatório;
mas optei por guardá-lo
registrado em um cartório.

Não gosto de falatório
e abomino a mentira,
o boato e a fofoca
só me provocam à ira,
pois sempre digo a verdade,
mesmo aquela me fira.

Sei que o cara quando pira
sofre a alucinação,
porém essa experiência
para a qual peço atenção
foi tão real como é
a miséria da nação.

Próximo a uma estação
de trens, em noite chuvosa,
abriguei-me num boteco
de uma varanda espaçosa,
quando um velhote chegou
mancando em busca de prosa.

Uma brisa misteriosa
com ele o bar adentrou,
piscou um olho pra mim,
uma pinga encomendou,
e, sem ser meu convidado,
à minha mesa sentou.

Um sambinha assoviou:
- "Eu, na verdade
indiretamente sou culpado
da tua infelicidade..." -
e nesse exato momento
faltou luz pela cidade.

Rindo com sonoridade
diz: - "Assim está melhor:
a natureza da noite,
como quis o Criador,
deve ser escura e fria
- para o crime e o amor."

Achei aquele senhor
muito espirituoso
e um brinde à sua saúde
propus, mas ele, jocoso,
preferiu brindar à Morte,
com seu hálito sulfuroso.

E prosseguiu, misterioso:
- "Conheço seus pensamentos.
Há muito o espionamos
pelos Quatro Elementos.
Conheço todos seus planos
e sei dos seus sentimentos.

Sei que em alguns momentos
você perde a esperança,
mas vim propor-lhe negócios
de estrita confiança...
Antes, vou pedir um prato
qu’é pra gente encher a pança:

- Ô sêo garçom, sem lambança,
diga lá ao cozinheiro
que prepare uma cabeça
de bode pai-de-chiqueiro,
mas me traga, como entrada,
sangue do bode, primeiro."

"- Meu distinto cavalheiro"
- espantado, retruquei -
"e quais são esses negócios
que me vens propor, meu rei?
Se for coisa desonesta,
saiba que recusarei.

Drogas nunca trafiquei,
Nem nunca matei ninguém.
Jamais amigo, roubei
o que pertence a alguém,
e sempre, por toda vida,
procurei fazer o bem."

- “Ó meu querido neném,
bom rapaz, coração puro...
Tu não vales um vintém
na podridão dos monturos:
apodrecerás, meu bem,
um dia, por trás dos muros.

Eu ofereço, sem juros,
felicidade terrena:
glória, poder e riqueza,
e o prazer sempre em cena,
em troca de tua alma:
veja se não vale a pena!"

Lobo, chacal e hiena
uivaram na noite escura.
Trouxeram sangue de bode
misturado a rapadura.
No prato caíra morta
rechonchuda tanajura.

Quis brincar com a Criatura
que me fazia careta:
- “Valei-me, Nossa Senhora!,
que eu encontrei o Capeta!...
- Ora, vê se não amola,
pobre velhote perneta!

Me dizes ser Coisa Preta
sem dar a comprovação?
De seus poderes terríveis
quero uma demonstração:
que reine nesse boteco
agora a depravação!"

Nesse instante, no salão,
adentrou devasso bando,
a sorrir, a se abraçar,
e falar de contrabando.
Uma mulher ficou nua
sobre uma mesa, dançando.

Outras a foram imitando,
e alguns homens também.
Eram dez, ou vinte, ou trinta
- talvez fossem mais de cem -
e alguns nos convidavam
para ir dançar também.

- "Inda duvidas, meu bem,
que sou o Anjo Exilado?
Pois então passemos logo
a fazer nosso tratado:
já virei a ampulheta,
o jogo está começado.

Eu gritei: "Xô, desgraçado!
Isso é só um sonho ruim.
Na hora em que acordar,
estarás longe de mim.
Mas já que estás presente,
quero ir até o fim."

Vi um anjo serafim
tocando sua trombeta.
Chegou pra perto de mim
então o Bode Perneta,
e já foi dizendo assim:
“Aperte a mão do Capeta!"

Cumprimentei Coisa Preta,
que então se transformou
em um distinto, elegante
- aristocrático senhor -
a debochar com ironia
da virtude e do amor:

- "Ora, me faça o favor!...
Pra que serve honestidade?
Me aponte um só dos ricos
que nunca agiu com maldade:
se quer viver na miséria
seja honesto de verdade!

E a infidelidade
é que salva o matrimônio:
pra ser feliz no amor
um pacto com o Demônio
é necessário fazer,
nada a ver com Sant'Antônio..."

No boteco, um pandemônio:
grasnava rasga-mortalha.
Uma briga entre os devassos
fez surgir uma navalha,
atiçando ainda mais
os impulsos da canalha.

- “Nossa Senhora me valha!,
Bom Ciço ou Frei Damião:
nunca mais na minha vida
quero brincar com o Cão!
Ai, como está demorando
essa alucinação..."

- "Onde boto a minha mão,
prospera, cresce a riqueza.
Sou patrono do sucesso,
e triste da realeza
que duvidar dos poderes
que tem o Deus da Baixeza!

Já degolei com firmeza
cabeças imperiais.
Mandei crucificar muitos
que se diziam imortais.
Fiz a turba da Judéia
optar por Barrabás.

Com sangue e com funerais
fiz muitas revoluções,
a cristãos e outros tolos
ministrei boas lições,
sempre dei aos bons poetas
as grandes inspirações.

Sou eu quem tenta os ladrões
e seduz todas as putas.
Provoco as controvérsias
que sempre acabam em lutas.
Implanto gula e luxúria
e o amor pelas disputas.

Só as almas mais astutas
é que na vida prosperam.
Aqueles que contra mim
praguejam e se desesperam,
não sabem que são mais meus
que os que em casa me esperam.

Felizes os que vieram
à Missa Negra do Cão!
Sabem-se almas perdidas,
não passaram a vida em vão:
a verdade está na guerra,
irmão matando outro irmão."

Nesse instante, no saguão,
numa bandeja de ouro,
uma cabeça de bode
- ao lado um ovo goro -
serviram à nossa mesa,
onde pousara um besouro.

- "A mosca do mau agouro
sempre é minha convidada."
- diz Ele, e: - "Não costumo
dividir minha noitada,
mas vou te dar um pedaço
da cabeça ensanguentada."

Eu provei da empreitada
e confesso que achei boa,
e disse assim para Ele:
- "Se és o Diabo em pessoa,
o que pode interessar-te
em um sujeitinho à toa?"

- "Contra ele mesmo caçoa,
alma minha, fraca e vil...
- Tu és, amigo, retrato
do povo do teu Brasil:
muito fácil de enganar,
basta ter um bom ardil.

Manda à puta que a pariu
a tua credulidade!
Insistes na esperança?
Ora, já não tens idade...
Quebra esse teu quietismo,
vai bagunçar a cidade!

Vais deixar minha maldade
só com a classe dominante?
Brasileiro pobre e triste
é o que serás doravante,
com seus políticos ladrões
e a tua Igreja pedante!

Pensas que a cada instante
não pagam tributo a mim
os poderosos de sempre,
a canalha, a classe ruim
que pegou a tua terra
e que a deixou assim?

Se queres comer capim
- rá, rá! - santa paciência!...
Agora tenho um encontro
com a nobre jurisprudência:
fica aí com teu pudor
e a tua pura inocência!"

Turvou-se-me a consciência
e logo caí no chão.
Acordei todo ensopado,
lambia-me um negro cão.
Ninguém mais via por perto
- tudo estava tão deserto
como a terra do sertão.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

MAJELA COLARES: POEMA


(Albrecht Dürer)
 
 
 
SONHO ANTIGO
 
ao Padre Pitombeira
 
 
Nos encontramos, enfim, não dispersos
por amor e querência desta vida...
 
nesta luz, que me envolve, está contida
a verdade que Deus me diz em versos
 
tão profunda pensei e concebida
feito luz, clareando corpo e mente
 
que elevada a um plano congruente
era amor e ternura revivida
 
mas o mundo se alterna em regras vãs
que segregam amores e amanhãs
 
limitando o que brota à flor da pele
é tudo que maldigo e, sim, condeno
 
essas vãs convenções – mundo pequeno
faz com que o meu sonho se rebele...
 
deste mundo esperei uma Canaã
não me veio algo além de um caos terreno
 
 
Do livro Memória Líquida – Ed. Confraria do Vento