quinta-feira, 4 de outubro de 2012

RAIMUNDO CORREIA: POEMA


(Goya)
 
 
TEMOR
 
Esses momentos breves
De ventura, e em que um raio doce aclara
Um trecho à tua tenebrosa vida:
Saboreá-los deves,
Esses momentos de fugaz ventura.
– Esta é como esquisita fruta rara,
Por muito rara, muito apetecida;
Fruta, cujo sainete pouco dura,
Saboreada com vagar, embora;
Deleita o gosto, assim saboreada,
Porém, sofregamente devorada,
Mata às vezes o louco que a devora!
Que o teu lábio sorria
Enquanto a dor sopita não desperta,
Nem vem do íntimo gozo que cala
Discreto e receoso,
Nenhum rumor alegre despertá-la.
Como um vinho acre-doce, da alegria
Ao saibo às vezes mescla-se o amargoso
De uma tristeza incerta
E vaga... Aos tristes disfarçá-las custa;
Pois, por um só prazer, mesquinho e raro,
A desventura cobra-se tão caro,
Que aos tristes o menor prazer assusta!


quarta-feira, 3 de outubro de 2012

LEILA KRÜGER: POEMA

 
(Tàpies)
 
 
Desenho


Quem és tu?
Que me desenhas no espelho um corpo nu...

e a roupa de existir dorme em outro armário
o sono justo dos cansados de mim.

Afinal, quem és tu? Que desbotas no espelho...


LEILA KRÜGER: POEMA


(Ismael Nery)
 
 

Distância
Que distância é essa entre meu espelho e os olhos alheios?
Entre a bondade imaginária e a gelidez evidente...
que distância é essa entre meus olhos profundos
e os olhos rasos do mundo?
Que distância é essa entre eu e o resto?
Entre eu e o tudo? Entre eu e o vento...
 
e a proximidade do nada
que de repente abraça como se abraça um estranho na estrada. Somos estranhos no breu
                                 – todos e eu!
 
Que distância é essa que me ama?
E meu nome chama na tarde linda; e nunca termina...
 
 

LEILA KRÜGER: POEMA

 
(Evelyn de Morgan)
 
 
 
Becos
 
Deus!
 
Quantas ruas escuras e becos eu tive que vagar
                                                 em busca
de um amor que não podia ter...
                                                 em busca
de um afago que não estaria nunca em um orgasmo
               em um beijo dócil por acaso.
 
Quantos olhares roubados...
 
Quantas mãos despedaçadas em adeuses inevitáveis quantos rostos amáveis que foram
                                fumaça na madrugada.
Quanta lágrima com pedaços crus de alma...
 
Quantos drinques amargos, quantos cansaços
                                quantas promessas
que já surgiram quebradas
                   por trás de sorrisos encantadores.
 
Quantas dores...
quantas dores de parto em dias de paredes
                                        que gritavam no quarto.
 
Gritavam teu nome...! Que eu não conhecia...
 
Quantos desvarios
quantos rios eu atravessei, sem saber nadar
para de repente tocar a luz da tua essência
                                                   que me recriou.
 
E eu nada sei além de ti...