domingo, 30 de setembro de 2012

JORGE ELIAS NETO: POEMA

 
(Modigliani)
 
 
Na paisagem doméstica
 
 
E se dissesse: fica ...
 
Varreríamos de vez
nossas obscenidades
ou deixaríamos estendido
sobre o chão de casa
esse falso tapete de culpas?
 
Vê essas garrafas enfileiradas?
Os silêncios
que rasguei das paredes
colei nos gargalos
          em que me perdi.
Na profundeza úmida,
resta, olvidado, seu nome.


JORGE ELIAS NETO: POEMA

 
(Marc Chagall)
 
 
Borgiana II
 
 
Repousa o veludo da pele,
        tigre selvagem,
nessa distante gleba
à qual chegaste
por caminhos incertos.
 
Lembranças grisalhas,
        velho tigre ...
Compartilho teus dentes
        nada castos...
 
Restou-nos o passado...
E suas páginas
de bordas marcadas.
Sempre reviradas,
        velho tigre,
para não esquecer os outros dias.
 
(O que nos resta quando o orvalho
            se perde no esquecimento?)
 
Nas catedrais, teu ouro roubado.
Depois raspado dos pilares
para cobrir os dentes.
Como se sorrir dourado
os fizesse arremedo de gente...
 
(Quanto de tua mordedura
            permeia nossos sonhos?)
 
Não se traduz o mistério
de tuas escápulas,
nem a névoa em teus olhos...
Quem sabe a milonga nos taquarais
ou tuas listras obliquas
resistam ao imprevisível fim.
 
           Tardam as horas ...
Cada expectativa tem teu cheiro
e se esforça para caber no poema.
 

JORGE ELIAS NETO: POEMA


(William Blake)
 
 
 
Borgiana I
 
 
Atiro os cacos
do espelho partido.
Busco-os no chão,
onde as imagens se dispersaram.
 
Com o que resta na moldura,
brinco de cortar os dedos
encaixando respostas
no rosto trincado.
 
E, se, no entanto, a figura
se assemelha ao medo,
remisturo todo
o ser desfigurado.
 
Pois a faina louca
de remexer segredos
fez-me encontrar as sombras
dos dias passados.
 
 


domingo, 23 de setembro de 2012

HILMA RANAURO: POEMA


 
DESCOMPASSO
 
Me querem mãe
e me querem fêmea,
me querem líder
e me fazem submissa,
me fazem omissa
e me cobram participação,
me impedem de ir
e me cobram a busca,
me prendem nas prendas do lar
e me cobram conscientização,
me tolhem os movimentos
e me querem ágil,
me castram os desejos
e me querem em cio,
me inibem o canto
e me querem música,
me apertam o cinto
e me cobram liberalidade.

Me impõem modelos
gestos
atitudes
e comportamentos.

E me querem única.

Me castram
podam
falam
e decidem
por mim.

E me querem plena....
 


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

DIEGO TARDIVO: POEMA


(Félicien Rops)
 
 
NÉON
 
 A noite se enluta, pequena hóstia vacilante
Que  penetra o aroma e cuida dos arbustos heréticos;
Agora sois vós, devolvidos à pátria e aos prazeres
Que arderão nas entranhas de vossos pensamentos.
Quanta ternura desperdiçada, quantas noites tristes!
Acalentando suplício para os cantores da fé...
Quisera suplantar meu precioso vício e a ponte
Não mais seria tão comprida quanto meus insuportáveis anos.
 
Luzeiro imortal, toca minha sombra e prospera!
 
E eu veria as belas meninas trançadas em dor
Não fossem os infortúnios das sagradas obrigações –
E todos os condados pelos quais meus dedos sangraram
Seriam divinos para meu paladar quando a febre
Começasse a pulular nos vales da memória – o baile
Começará e as tenras raízes inconscientes vacilarão
Quando ouvirem de um murmúrio as primeiras melodias
De luto e comiseração pela vida passada que não vi.
Sob a marquise da loja surrada voltei-me e relanceei
A amurada lúdica que transpôs a madeira de minha alma.
 
Luzeiro imortal, toca minha sombra e prospera!
 
Doçuras encantadas nas cidades perdidas,
Esmurradas crianças esfaimadas, gélidas de fúria,
Minhas inaptidões, como sou fraco! Desistirei! –
Sim, quando a última brisa me assoprar tristemente
Que já não poderei suportar o fardo das experiências,
Pois as mesmas há muito transformaram-se em feridas
Que o tempo não beija porque quer se preservar.
Confiarei em minhas mãos trançadas e em minha prece;
Terei porventura mais radiâncias do que os velhos amores
Que minha amada conheceu sem sequer me consultar?
 
Luzeiro imortal, toca minha sombra e prospera!
 
Todos seremos premiados com a promessa cálida
Estendida dos cálices e das taças transbordantes,
E a aventura dos apaixonados há de gorjear para o sol
Como pássaros magoados junto ao sombral das flores.
Ah, jóias obscuras, quantas vezes pereci por vós!
Quantos beijos deixei de dar por lealdade à vossa voz!
 
Luzeiro imortal, toca minha sombra e prospera!
 
10/09/12



DIEGO TARDIVO: POEMA


(Félicien Rops)
 
 

NÃO TE CONVIDAREI AOS FESTINS PRIMEVOS
 
Não,  não te convidarei aos festins primevos,
Ó minha raquítica pomba aniquiladora –
Pois ganhei a graciosa presença de diversas puerilidades
E nelas não desejarei novamente me perder
Como outrora perdia-se nos dissabores
A calmaria de tuas breves alegrias.
Sou tão-somente uma lira a degustar mansamente
O oposto de tuas lembranças imaginárias,
Um forte opositor de teus delírios megalômanos
E um heróico gladiador na arena em que entraste,
E por isso mesmo não te convidarei aos festins primevos,
E não te convocarei a comparecer na docilidade do ódio
Que me traspassa a alma quando olho o horizonte
No qual antigamente te perdias com teus colírios
E teus crimes de falsa moléstia lunática –
O véu da madrugada me consome em lascívia e trêmulo
Conquisto a primeira devassidão de meus invernos.
 
Portanto, aquieta-te, cala-te, ó Ninfa!
Tu eras criança quando te beijei as têmporas
E te vergastei o espírito como perfeito varão –
Eras um rouxinol deitado à sombra de um carvalho
E o vinho que provavas ainda era muito quente.
Que séculos de não-existência possam me consolar
No momento em que de teus claros e pálidos olhos
Minha vida extrair sepulcral alimento para a claridade;
E não acredito mais em solidões desencantadas
E não te convidarei aos festins primevos.
 
09/09/12

DIEGO TARDIVO: POEMA


(Félicien Rops)
 
 

DE JÚBILO A TARDE HÁ DE MORRER
 
De júbilo a tarde há de morrer,
A estrela primaveril não nasceu ainda,
               E Deus será o grande virtuose
               E ao barro volveremos lânguidos.
 
A noite não se ausenta quando a aurora
Claudica de horror diante de todos os anos
               Que releguei à carícia dos enfermos
               Dispostos em leitos floridos como o céu.
 
Ó meus pobres joelhos dobrados!
Arqueados em súplica diante da vida!
                Seremos, filhos, mais corajosos
                Do que os guerreiros que perderam?
 
E desconfio de toda pureza milenar
Pois o acorde dos fracos me desperta e acorre
                Como vileza prestes a aniquilar nos vales
                A errante romaria de eternos cães malditos.
 
Sim, de júbilo a tarde há de morrer,
O humor dos pedantes não nasceu ainda,
                E Deus me consolará de meus sorrisos
                Quando a floresta cantar para meus olhos.
 
09/09/12

DIEGO TARDIVO: POEMA


(Félicien Rops)
 
 
LAMENTO POÉTICO
 
Ah, paixões e reinos primários!
Jazem sobre meu crânio essas velas
De sombra e esperança, e a castidade
Não me encoraja a exortar a flor silvestre
A amealhar da beleza os sonhos maus.
 
Se fui indócil quando beijei a nudez
Da mulher reencontrada, isento-me de culpa;
Posto que ninguém me havia dito
Que o sol imaginado é um desenho de dor
No rosto daqueles que sangram empoeirados.
 
E fui mais do que um companheiro leal
Da primeira donzela que me contou sua vida,
Ávida por minhas mazelas e meus êxtases,
Que só atribuo à quintessência de meu pesar
Porque a desilusão se derrama em leitos solenes.
 
Dançaríeis então a primeira valsa que concebi
No dilúculo aniquilador dos primeiros sonhos?
 
08/09/12


DIEGO TARDIVO: POEMA


(Félicien Rops)
 
 

CANÇÃO DOS MANJARES MÍSTICOS
 
Este pão que comes, meu filho,
Subjaz nos lábios da castidade
E nas terrinas úmidas do Amor –
Sem que para tanto necessitem
Os antigos escravos de sua míngua
De caridade e compaixão, tudo
Entrelaçado enquanto os corpos
Ausentam-se nos dias cáusticos.
 
Esta água que bebes, meu filho,
Refluía ao longo de músculos nus
E gotejava de calhas profanas como
O gorgolejar de luares no puro inferno –
É a insígnia da perfeita bonança
E a paz teria beijado o seio da guerra
Quando da unidade adâmica surgissem
Diamantes – adormecidos e lânguidos.
 
Esta arma que empunhas, meu filho,
É o brasão vil da mortandade oculta,
Dessas que se escondem em armários
E ainda assim permanecem fiéis à Musa.
Terrível dobre de infinito censurado,
Volvei, ó palidez, que a morte chega
Uivando à miséria hinos de beleza amarga
E barganhas prostradas na lama de fogo.
 
Este vinho que provas, meu filho,
Já havia embelezado as cabeleiras nuas
De pobres dançarinas cantando absurdos
Enquanto os poetas lamentam a alegria –
E continuará por muito tempo ainda
Sendo o espelho diante do qual figuram
Os sorrisos e as lágrimas que são precárias,
Os deleites e os êxtases que são tacanhos.
 
08/09/12

DIEGO TARDIVO: POEMA

 
(Félicien Rops)
 
 
QUATRO NOTAS DE SOMBRA
 
I
 
Cordas de violão estremecidas por meninos nus.
O corpo saqueado por fenômenos visuais e auditivos.
A língua espichada para a forragem demoníaca do Ser.
O cântico sistemático de todos os opostos possíveis.
 
Ligeiro movimento para a esquerda. Calai-me!
Pérfida oscilação no deserto carmesim. Atai-me!
Lúcida peregrinação no solo dormente. Fazei-me!
Cândida romaria entre folhagens doentias. Suportai-me!
 
E então estarei outra vez dormindo ao relento
Quando a mancha do pirilampo sacudir o planeta
Como tremem as atmosferas lívidas dos santos
E as galhofas inocentes dos tenros palhaços.
 
Como gostaria de receber o pueril perdão
E caminhar perenemente rumo à luz de antanho!
Como gostaria de mastigar minhas doces convicções
Entre minhas mandíbulas de mármore e sonho!
 
Não acredito que possam curar-me deste devir,
Apenas acredito que continuarei despindo-me assim
Até que cheguem as primeiras bailarinas do ar
Respirando ultrajes através da parede invisível.
 
II
 
Acreditada então
A seara, e deitada
A mocinha – ferida
Por grisalhos brasões.
 
Cunhada eterna
Fui teu filho e dor
Sentirás no instante
Em que o belo partir.
 
Cansaço e presença
São ares de saúde –
Como os mil vestígios
De minha aptidão.
 
Será que terei
Dinheiro algum dia?
Ou até o eterno
Poderei correr livre?
 
 
Creio em ti, Ventura!
Meu colo é macio,
Repouses aqui,
Dorme apascentada.
 
 
III
 
Jamais tornaremos a ver o horizonte opaco
E nossos sonhos são ainda muito insones.
Jamais diremos à primeira gratidão pensada
Que irascíveis trotamos ao longo das matas.
 
Pois que devoramos nossos próprios brilhos
Dentro da noite e fora do apoteótico dia.
Sejamos absolutamente mordazes nesta desventura,
Pois o futuro depende de nossa coragem!
 
E ainda que de límpidos reflexos no luar quente
Pudesse eu extrair a aura de qualquer banquete,
A superfície de minha alma estaria ainda conquistada
E o fundo de minha personalidade esmurraria a realidade.
 
Conquistamos os terrenos de todas as porcarias
E defecamos sobre as cabeças dos pardais racionais,
Fizemos e refizemos nossa fama à custa de grãos
E a morte decerto será generosa quando nos deitarmos.
 
Acreditara outrora nos vinhos amargos e ásperos,
Nas estradas que não terminam e nos palácios nus,
Nos centauros decadentes e nos séculos das verdades,
Nos elementos neutros de uma mente enviezada.
 
 
IV
 
Parti. O caminho é certo.
Regressemos à escuridão –
Deixemos para trás a Luz
E engulamos tudo.
 
Conheço-me. Sei rezar.
A lassidão me atormenta.
O Prazer me emenda
Às saias da Justiça.
 
 
 
Cansado, quero fugir.
Tremer no vasto arrebol.
Exaurir-me de febres
E estontear-me de olhares.
 
Enfim, liberto estou.
À minha frente, néscia,
Descortina-se a flora
E toda a vida passada.
 
Continuarei sendo.
O ar está quente e seco.
Devorem-me as quimeras!
Sou o demônio do riso.
 
07/09/12