terça-feira, 31 de julho de 2012

CARLOS PENA FILHO: POEMA


(Lawrence Alma Tadema)


A Rosa, no íntimo

Entro em teu breve sono, onde os minutos
são três pássaros líquidos e enorme,
e descubro os gelados aquedutos

guardiães do silêncio, enquanto dormes.


Pouso a cabeça nos teus lábios sujos
de mundo e tempo, e vejo que possuis
em teus seios, dois bêbados marujos
desesperados, sós, raros, azuis.

Enfim, além (no além de tuas pernas
onde Deus repousou a sua face,
cansado de inventar coisas eternas)

desvendo, ao desespero de quem passe,
a rosa que és, a mística e sombria
a noturna e serena rosa fria.

sábado, 28 de julho de 2012

EPIGRAMA


(Edward Burne-Jones)


EPIGRAMA (21)

Marta, é de supor que saibas
dos reveses do amor.
Não trazem as estações
em sua alternância
 a certeza da flor?

POEMA


(A Faxineira - W.J.Solha)


DESFECHO

Deveríamos saber de um sentido maior
que justificasse o que somos
feito o vento
ou uma canção reincidente
a trazer-nos luz.

Mais do que esperado,
aceito.
Dádiva consentida
pelas mãos do que supomos
seja a verdade
ou o derradeiro
desfecho
de um itinerário
inconcluso.

Porém mais do que
perfeito.





IVO BARROSO: POEMA





OS POETAS DE SETENTA ANOS

Ao Sr. A. Rimbaud

E o Velho, então, fechando o livro do dever,
Exausto e satisfeito ia dormir, sem ver
Que à força de se impor prorrogações horárias
De trabalho, arriscava as frágeis coronárias.

O dia inteiro esteve a traduzir-te; faz-se
Incansável; no entanto, a azulidez da face
Deixa ver claramente acres hipocondrias!
Em meio ao corredor, seguro às esquadrias
Da porta, já sentiu tonteiras, quase a perda
Do equilíbrio, e essa mosca em sua vista esquerda.
A noite no escritório é sempre igual: um foco
De luz dicróica sobre o micro, o mouse, um bloco
De anotações e a tela acesa a piscar… Tarde,
Extenuado, a zumbir o ouvido, a vista que arde,
Antes de se deitar, contudo se demora
No banheiro, onde fica a ler por mais uma hora.

Quando, em plena manhã, na varanda que esplende
Ao sol, por um momento em seu sofá se estende
Olhando para a verde aba das altas palmas,
Tentando refrescar a mente das incalmas
Preocupações da noite, o drama recomeça.

Coitado! Ergue-se e vai correndo a toda pressa
Para o computador, achando que encontrara
A rima que buscou o dia inteiro, a rara,
E se acaso, afinal, a solução lhe brota,
Põe-se a falar sozinho e a rir como um idiota!
Já ninguém o visita: os amigos só pelo
Telefone, receando acaso interrompê-lo,
Chamam pela mulher; perguntam pelo “ausente”;
Ela diz que vai bem, que está dormindo — e mente!

Aos setenta sonhava imprimir em off set
Os versos que escreveste em teu caderno, aos sete,
Cheios de rios, sóis, savanas! — Recorria
A todas edições anotadas que havia
Bem como a traduções inglesas, italianas.
Quando, avançada a noite, exausta das poltronas
— Às duas da manhã — a mulher reclamava
Que assim era demais, ele ainda teimava
Em ficar mais um pouco olhando para a tela
Do micro, a salvar tudo e a sair, enquanto ela
Cansada de esperar, apaga a luz do quarto.
— E o pobre, sem saber que escapara do enfarto,
Dormia com teu livro aberto sobre o peito.

Temia essas manhãs de domingo, o suspeito
Passeio pela praia, o olhar discricionário,
Enquanto abandonava o Livro e o dicionário,
Embora em sua mente, ao caminhar, os visse.
Já não amava o mar, achava uma tolice
A exposição ao sol, aqueles corpos nus
Banhando-se na densa e xaroposa luz
De um êxtase vital que já não compreendia.
— Amava a noite que trocara pelo dia,
As vigílias sem fim, os encontros furtivos
De palavras que não se encontram nos arquivos!

E como preferisse as coisas mais herméticas
Buscando penetrar as alquimias poéticas
Dos versos em que os sons têm cores de aquarelas,
Metia-se no quarto e fechava as janelas
E assim, nesse escafandro em fundas culminâncias,
Via os peixes azuis das rimas e assonâncias,
Das métricas sem par, dos ritmos em conflito!
De volta do mergulho, entre alumbrado e aflito,
Um momento se punha a descansar na cama
De lona, a pressentir longinquamente a fama.

RESENHA DE W.J.SOLHA SOBRE O ROMANCE DE MARÍLIA ARNAUD






A  SUÍTE DE SILÊNCIOS  DE MARÍLIA ARNAUD

W. J. Solha

Deixo-lhe a melodia tecida nas cordas da minha carne, nos acordes da minha memória, na cadência do meu coração, a melodia-existência, labiríntica como o espírito, misteriosa como o tempo, definitiva como a morte. Último parágrafo do romance



Aquela que até agora era conhecida como brilhante contista,  não começa o seu primeiro romance ( Editora Rocco, Rio, 2012) com ganas de deslumbrar o leitor. Nada parecido com as quatro notas iniciais da Quinta de Beethoven;  com as marteladas de piano que abrem o concerto número um, pra piano e orquestra, de Tchaikosky; a clarineta virtuosística de Rhapsody in Blue, a imponência da Abertura de O Guarani. Porque a violinista Duína – a personagem-narradora de Marília Arnaud - não nos quer levar a nada de grandioso, imponente, grandiloquente, arrebatador. Seu clima é o da Ária na Quarta Corda Sol, de Bach; do Adagietto  da Quinta de Mahler; a do tristíssimo, lento – e maravilhoso -  solo das peças para piano de Éric Satie, como Trois Gymnopédies e Trois Gnossiennes.

- A vida – ela escreve - é uma suíte de silêncios, a longinqua música de Deus.

O cuidado com que Marília Arnaud nos apresenta cada nota de sua Suíte, é a de um solista que fecha os olhos com força,  com doloroso gozo, pra obter os sustenidos mais difíceis e perfeitos do instrumento. Que instrumento, no caso?

- Meu corpo, minha unidade. Meu corpo, minha vida. Meu corpo, eu.

É curioso o fascínio que o mundo das mulheres  exerce, principalmente sobre os homens. Quando eu trabalhava no filme Era uma vez eu, Verônica – igualmente confessional - perguntei ao diretor e roteirista Marcelo Gomes, se ele iria dizer, depois, como Flaubert sobre sua Bovary, que “Veronique c´est moi”. E ele, rindo:

- Não, não...

Mas eu vi, passo a passo – no papel de pai da personagem - o esforço ingente da grande atriz, que é  Hermila Guedes, pra chegar à perfeição de dar corpo à proposta do cineasta. Quem se esquece de Laura, Lara, Scarlett O´Hara, outras grandes personagens femininas do cinema? E de Aída, Carmem e La Traviata, na ópera? E das figuras femininas de Shakespeare, como Ofélia, Cordélia, Rosalinda, Desdêmona, Cleópatra, Julieta, Lady Macbeth? E acabo de ler os originais do excelente Palavras que Devoram Lágrimas, do paraibano Roberto Menezes,  que será lançado em breve, pelo estado, em que há um fluxo  de memória de uma personagem louquíssima à la Molly Bloom, via Almodóvar; e leio a sólida resenha do também nosso  Rinaldo de Fernandes sobre Suíte de Silêncio e meu lembro de seu premiado Rita no Pomar, e não há como não lembrar agora da Ana Karenina, de Tólstoi: da Capitu, de Machado; da Lolita, de Nabokov;  de Anna Terra, de Érico Veríssimo; da Diodorim, do Guimarães Eosa; da Gabriela, Tieta e Dona Flor, de Jorge Amado, etc, etc, etc..

Mas

é notável como aumenta o interesse dos leitores quando encontram tais almas em livros diretamente de autoras.  Como Clarice Lispector,   Françoise Sagan, Jane Austen, Virginia Woolf e assim por diante, simplesmente porque delas é que se espera mais... verdade.

Suíte de Silêncios é um romance extremamente feminino, extremamente bem escrito,  extremamente triste e – sabe o que é dizer isso como elogio? -  extremamente lento. Aborrecido? Nunca, never, jamais! E como ela conseguiu? Há uma cena incrível de equitação, no filme Mazeppa, de  Bartabás, no qual ocorre uma demonstração de absoluto controle de um galope ao fazer a montaria – a cada movimento - quase não sair do lugar.  Assim, Marília Arnaud – no que tange ao tema de sexualidade de sua narrativa de 190 páginas, por exemplo -  entrega-nos um primeiro toque íntimo, o de Victor em Duina, apenas na página 174, e - na seguinte -, a do prof. Ramon. Só na página179  o grande amor da jovem, João Antonio, faz amor com ela pela primeira vez  De novo a questão: Como ela consegue nos manter presos a seu depoimento? Como os cavaleiros de Bartabás: entregando-nos – perfeito em si mesmo - cada momento, cada etapa de sua evolução. 

1) Foi quando passei a usar camisetas por baixo das blusas e vestidos, para disfarçar os seios de pitomba. Justament nessa época começaram os constantes suores nas mãos, as espinhas purulentas no rosto, o odor repugnante nas axilas

2) Existiria algo mais bonito do que meu corpo, livre de qualquer reserva, à espera do seu?

3) A carne! (...) Porque tudo é carne, cavidades, secreções, odores, e é tanto, e tão intensamente, que chego a pensar em seu mistério como sendo tão grande ou maior do que o da Santíssima Trindade!

4) Eu o amei como só é possível amar em tempos de guerra, com a lucidez alucinada de quem sabe que aquela pode ser a última vez.

5) Guardar segredos. Sempre fui boa nisso.

Marília Arnaud faz um instigante jogo de espelhos em sua história. A Duína que  narra, padece de uma dor insuportável desde que foi abandonada por João Antonio. E conta para ele ( na verdade para nós) o que está sentindo e o que está rememorando também: a angústia terrível – na sua infância - causada pela fuga da mãe com um amante, deixando o marido – e a filha - arrasados.

- Mamãe não voltou. (...) uma manhã como nunca houve outra igual! A primeira sem ela.

O desespero da rejeição que Duína sente e que também vê no pai a  desesperam:

- Será que não existe nada mais indigno do que ser abandonado?

Quem viu Morangos Silvestres, de Bergman ( Suíte – diga-se de passagem – também me lembra Bergman pela lentidão densa – é óbvio – e pelo  forte vínculo Eros e Tánatos: sexo e morte. ). Pois bem: quem viu Morangos Silvestres,  lembra-se do velho professor que, em meio a uma viagem de carro, para no lugar em que vivera muitíssimos anos antes, e se vê – a maneira bergmaniana de lhe mostrar a memória – em várias passagens decisivas de sua vida.

Observe a acuidade feminina destas observações de Duína sobre sua mãe, num detalhe dessa imensidão de um passado que não passa:

- Um homem atravessou-se na minha infância (...) calçando sapatos brancos.

E ela anota:

- Parecia agitada, a todo instante arrumando o vestido do corpo, ou passando as mãos pelos cabelos. E que jeito de falar era aquele, em um tom frágil e cantado, que eu não conhecia?

É num momento desse que se conhece o romancista. E, mais precisamente: a romancista. E o efeito na própria garota é decrito por ela mesma, décadas mais tarde:

- Nesse dia, tive a repentina compreensão de que  (...) em minha mãe existia algo indefinível, que transcendia a obviedade. (..) Essa descoberta foi o meu primeiro abismo.

Claro que o abandono da mãe a seu pai (e a ela) cala mais fundo quando a situação se repete com a partida de João Antonio, de volta para a esposa, deixando Duína, pela segunda vez, insuportavelmente rejeitada. E essa última dor torna a primeira maior. Borges fala que Browning é kafkiano escrevendo muitos anos antes de Kafka, mas alerta que atentamos para isso – evidentemente – só depois que Kafka existiu.

- Você se fora e eu me dava conta de que, enquanto vida houvesse, sempre se podia perder um pouco mais.

E ela realmente perde tudo: a mãe, Victor, João Antonio. A queridíssima vó Quela não morre, simplesmente: Deixou-me no meio de uma noite, sem despedida. E o maestro? Ao final da apresentação – ela conta do primeiro concerto de que participa – busquei, no momento dos aplausos, em meio aos olhos da plateia, os de meu pai, e o que enxerguei neles me deixou prostrada.

Duína, entretanto, não tem reações como a da personagem de Liv Ullman quando é humilhada pelo comentário da mãe – pianista famosa – à sua performance, no Sonata de Outono, de Bergman. Toco razoavelmente bem – analisa - na medida da minha mediocridade, que hoje encaro com uma quase indiferença.

Mas a perda de João Antonio – apesar de aceita ( Não o culpo por haver partido) – é definitiva.

- Fora de mim, além do meu patético mundo de dor e autopiedade, não existia nada. Nada.    

Mas Duína tem seu resgate num golpe de mestre de Marília Arnaud:

- Agradava-me aquela sensação ambígua e inconfessável de entrega à dor.

Masoquismo? De Duína. Da romancista, orgasmo criador:

- Me deixe ficar quieta em minha concha, você bem sabe como aprecio essas zonas sombrias, que me são quase uma carícia.

E foi na frase seguinte que ela descobriu que tinha um belo romance nas mãos:

- Só  dor nos faz chegar à essência das coisas.

Marília Arnaud prefere selos a um outdoor. Música de câmera à orquestral, sinfônica, coros, trompas, trombetas. Sussurros em lugar de gritos. E, segura da qualidade do que produz, mantém-nos, passantes, no seu passo, compasso. Veja como ela descreve a capela da escola de sua infância:

- É um mundo vagaroso, apartado do que zune lá fora, onde o ar é feito de um silêncio solene, que incha nos ouvidos, como se estivéssemos embaixo d´água.








quarta-feira, 25 de julho de 2012

PÉRICLES EUGÊNIO DA SILVA RAMOS: POEMA


(W.J.Solha)


EM LOUVOR DE JUSTOS E INJUSTOS


Cortei caminhos, conheci florestas,
andei pelas cidades fatigando ruas;
mas sempre, olhando coisas e pessoas,
como de dentro de uma nuvem eu as via:
uma nuvem de alheados pensamentos,
de meigas luas e de noites brancas,
nuvem de aromas e rasgões de céu;
mas uma nuvem tranqüila, aérea, espiritual,
como se não tivesse conhecido o mundo,
nem nunca houvesse contemplado terras.

Hoje, que um sol de outono dissipou as névoas
que de mim separavam meu verão,
descubro e redescubro quanto existe
e vejo em tudo faces novas, rostos puros,
banhados de ternura e suavidade
como na aurora do primeiro dia;
e a noite é minha amiga, e o dia é meu amigo,
amigas tantas mãos que me socorrem,
amigos esses punhos que me atingem.

Bem haja pois aquele que me fere,
porque me força a ver com olhos antes enevoados;
bem haja aquele que me calunia,
porque me faz pensar nas injustiças;
bem haja aquele que me expulsa de meu lar,
porque me lembra de que há albergues a construir;
bem haja aquele que sorteia a minha túnica,
porque me obriga a fazer vestes para os nus.

Mas benditos,
benditos para mim antes dos mais,
benditos esses braços que me amparam
quando erro em meio às trevas;
benditos os capazes de sorrir a quem se encontra só,
sozinho em meio à noite e às árvores do campo
a interrogar-se e a interrogar os ventos,
ferido, mas confiante na grandeza,
nesta grandeza efêmera, mas firme e generosa,
da humana condição, forja de um mundo novo.


Do livro Poesia quase completa. Ed. José Olympio.   


terça-feira, 24 de julho de 2012

OLAVO BILAC: SONETO


(Ticiano)


Inania verba

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca não diz, o que a mão não escreve?
— Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
Olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...

O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava;
A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,
Que, perfume e clarão, refulgia e voava.

Quem o molde achará para a expressão de tudo?
Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
Do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?

E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?

OLAVO BILAC: SONETO


(Renoir)


XXXI

Longe de ti, se escuto, porventura,
Teu nome, que uma boca indiferente
Entre outros nomes de mulher murmura,
Sobe-me o pranto aos olhos, de repente...

Tal aquele, que, mísero, a tortura
Sofre de amargo exílio, e tristemente
A linguagem natal, maviosa e pura,
Ouve falada por estranha gente...

Porque teu nome é para mim o nome
De uma pátria distante e idolatrada,
Cuja saudade ardente me consome:

E ouvi-lo é ver a eterna primavera
E a eterna luz da terra abençoada,
Onde, entre flores, teu amor me espera.


domingo, 22 de julho de 2012

ENTREVISTA COM O PROF. DR. RICARDO COSTA



(Professor efetivo da Ufes e Acadêmico correspondente no exterior da Reial Acadèmia de Bones Lletres de Barcelona. Sua produção acadêmica encontra-se disponível em www.ricardocosta.com/novosite)



1) A Igreja Católica como instituição encontra-se nas raízes culturais do Ocidente, visto ter feito do cristianismo como religião um processo civilizatório de assimilação e transmissão da cultura Greco-Romana. Assim, durante séculos a cultura tornou-se a principal dimensão do cristianismo como manifestação teológico-estética, o que pode ser visto em diversos campos da arte. Com o advento do secularismo esse processo tornou-se praticamente nulo. Quais as conseqüências desse entrave secular para o cristianismo e para a Igreja Católica como instituição?



Ricardo da Costa – Cultura e Cristianismo, de fato, formaram, moldaram o Ocidente, como tentei recentemente mostrar em uma conferência no Rio, ao tratar da relação entre o ideal monárquico e o Cristianismo (“A Gênese da Monarquia no Ocidente Cristão, sécs. IV-VI”). O mundo se secularizou a partir do século XVIII – na Filosofia antes – e o século XIX foi o momento de ruptura, com a disseminação dos ideais revolucionários franceses. Presenciamos hoje as consequências mais dramáticas desse processo: atualmente, à medida que o mundo rapidamente se descristianiza, cresce a violência, não só a mais extrema, mas tambem nas relações sociais mais corriqueiras. As pessoas hoje estão incrivelmente agressivas. Não é preciso ser historiador para perceber isso. Qualquer pessoa minimamente sensata e com mais de cinquenta anos percebe isso. O mundo era inacreditavelmente mais pacífico antes da década de 60 – refiro-me aqui à vida cotidiana, naturalmente.



De fato, a década de 60 foi um dos momentos de maior ruptura histórica que a Humanidade vivenciou. O começo foi o Concílio Vaticano II (1962-1965), com a prostração teológica da Igreja ao mundo. A seguir, a explosão do rockn’roll (iniciada em meados dos anos 50). O próprio John Lennon (1940-1980), em uma entrevista bombástica concedida em 1966, afirmou que o Cristianismo encolheria até morrer, e que eles (os Beatles) já eram então mais populares que Jesus Cristo. Se estivesse vivo, considerar-se-ia profético...



A Revolução cultural na China (1966) promovida por Mao-Tsé-Tung (1893-1976), com sua destruição do passado (inclusive das obras de arte do período Ming), Maio de 68 em Paris, Woodstock (1969), a explosão das drogas (a partir do verão psicodélico-californiano de 1966). Tudo foi rompido, subvertido, alterado. O mundo nunca mais foi o mesmo.






A eliminação dos Quatro velhos na Revolução Cultural da China: velhos costumes, velha cultura, velhos hábitos, velhas idéias.[1]





Quanto à Igreja Católica, como me pergunta, ela própria está implodindo internamente – desde 1962 (afinal, destruir séculos de tradição não desaparecem da noite para o dia). Se podemos julgar a árvore por seus frutos, as decisões do concílio foram um desastre para a fé.



Meu irmão Sidney Silveira, especialista em questões da fé, há algum tempo enumerou algumas das muitas transformações ocorridas no seio da Igreja.[1] Colocarei apenas vinte e um itens.



A Igreja 1) assimilou filosofias modernas contrárias à fé, inclusive ensinando-as nos seminários; 2) praticamente aboliu os anátemas, reservando apenas para os poucos que quiseram manter-se fiéis à Tradição; 3) apoiou o ecumenismo (milenarmente condenado); 4) apoiou heresias no seio de sua hierarquia; 5) proclamou-se “subsistente” em igrejas e seitas pseudo-cristãs, não se considerando mais a Igreja de Cristo; 6) fez com que o dogma extra Ecclesiam nulla salus virasse pó; 7) tornou-se laica em política, aceitando a tese da separação entre as ordens material e espiritual (entre o Estado e a Igreja); 8) alterou a doutrina da liturgia e transformou a Missa em uma festiva celebração; 9) estimulou o pluralismo teológico com a criação da Comissão Teológica Internacional (CTI), cujos documentos são dúbios em favor de teses modernistas; 10) aboliu formalmente o Index.



Mais: 11) permitiu que teólogos passassem a questionar as verdades da fé e do Magistério (para uns o Limbo não existe; para outros o Inferno está vazio, etc.); 12) aboliu estágios fundamentais na ordenação sacerdotal; 13) permitiu que jovens claramente sem vocação adentrassem nos seminários; 14) beatificou teólogos formalmente proscritos, como, por exemplo, o italiano Antonio Rosmini (1797-1855), ontologista incluído no Index e condenado por três Papas; 15) alterou o Código de Direito Canônico; 16) aprovou um Catecismo semelhante a um tratado de psicologia fenomenológica a ser entendido por meia dúzia de teólogos e filósofos, e não um documento simples, dirigido a todos os fiéis, mesmo os mais simples e indoutos, como era o Catecismo de São Pio X; 17) aboliu as mais importantes etapas dos processos de canonização, tornando a santidade algo ordinário – o papa João Paulo II (1920-2005), sozinho, canonizou mais santos do que 500 anos de Papas juntos! De dom extraordinário da graça, a santidade tornou-se ordinária; 18) baniu por décadas a Missa Tridentina, usando de medidas disciplinares rigorosas para com os tradicionalistas, e estimulou os mais absurdos experimentalismos litúrgicos, formalmente, através dos bispos, ou por pura e simples omissão dos níveis da hierarquia; 19) permitiu a comunhão na mão sob o pretexto de repetir o cristianismo primitivo (com isto perdeu-se a noção de que as sagradas espécies só podem ser tocadas por mãos ordenadas); 20) aprovou (ou tolerou) movimentos como a Teologia da Libertação (nas décadas de 60 e 70) e a Canção Nova, recentemente; abriu o flanco para teses teológicas contrárias à fé (como a evolução dos dogmas e o poligenismo, ou seja, a idéia de que não houve Adão e Eva, mas protoparentes, o que acaba com a doutrina do Pecado Original); 21) estimulou o fim do uso da batina; os padres passaram a se vestir mundanamente.



Em resumo: com isso, a Igreja está implodindo por dentro. Nunca houve um recuo tão grande do número de fiéis.



De qualquer modo, os intelectuais europeus contrários ao papel da Igreja no processo histórico do Ocidente, como um Jacques Le Goff (1927- ), por exemplo, famoso marxista da Escola dos Annales (1929-1994), em suas últimas entrevistas, já recuou. Com o avanço do Islã na Europa – há em curso uma verdadeira islamização do Velho continente – o historiador francês já deixou claro que a Europa deve olhar para seu passado de modo mais benigno.



2) A partir do humanismo renascentista, e, sobretudo com o Iluminismo francês, criou-se uma historiografia ideológica com conseqüências extremamente negativas para a religião cristã e a Igreja Católica quanto ao seu papel cultural na Idade Média. Daí o epíteto “Idade das Trevas” como referência histórica para esse período. Como você vê essa questão?



Ricardo da Costa – Impossível de ser resolvida. Além de já ter sido construída uma vasta bibliografia tremendamente parcial, há várias “frentes de ataque”. Em primeiro lugar, os próprios medievalistas: há muitos que sequer lidam com fontes primárias. No Brasil especialmente. São reprodutores de afirmações de terceiros. Sequer se dão ao trabalho de conferir as informações criticamente.



Deixe-me explicar melhor o que entendo por “conferir as informações criticamente”. Sabemos que os textos primários, em sua maior parte, são cópias, escritas em diferentes períodos. Normalmente, os historiadores mais ciosos de seu ofício costumam consultar edições princeps, ou seja, textos elaborados por filólogos que tiveram o trabalho de confrontar os diferentes manuscritos da obra, para chegar ao provável texto original. Pois bem. MUITOS historiadores não lêem fontes primárias. Outros, quando lêem, consultam edições terríveis, sem o devido preparo erudito. Como eu lido diretamente com fontes primárias em meu ofício, em minha área de estudo – desde os textos de Ramon Llull (1232-1316) até hoje, com os clássicos da Coroa de Aragão (sécs. XIV-XVI)[2] – conheço todo o processo de produção de uma edição crítica. Assim, por não conhecerem o processo – sequer se interessam por ele – os historiadores que lêem essas edições mal feitas não fazem uma boa leitura (interpretação). Aceitam acriticamente a informação, não confrontam com outras fontes, e não se dão ao trabalho de conferir as expressões utilizadas pelo tradutor (nem comparam diferentes traduções).



Há muitos níveis em todo o processo até o resultado final – quando o historiador lê a fonte. O mais comum é o historiador ler uma obra contemporânea e acatar as conclusões e interpretações do historiador. Isso ocorre porque normalmente durante o curso de graduação além de não haver o hábito de se estudar com fontes, os próprios professores que lecionam determinam qual a interpretação é a “melhor”, um pouco ditatorialmente, sem aceitar questionamentos nem debates. Pior: há muitos estudantes que se formam hoje sem terem lido um livro inteiro. Isso sem contar o modismo acadêmico atual que “não existe verdade” e “todas as interpretações são igualmente válidas”, uma porcaria que está estragando gerações de alunos.



Em nosso caso específico, a Idade Média, a situação piora ainda mais porque, para ler uma fonte medieval é necessário um preparo erudito, um costume de leitura que é diferente de uma fonte do século XIX, ou XX. A atual geração de estudantes de História tem um interesse muito restrito: o mundo do passado antes da Revolução Francesa não desperta interesse. Pior: a preferência é pelos estudos a partir do final do século XIX.



Por fim, o preconceito em relação a TUDO o que diz respeito à Igreja Católica – inclusive por parte de muitos medievalistas, que só estudam a Idade Média na perspectiva das relações de poder – poder material, diga-se de passagem. Um ponto de vista completamente anacrônico para se tratar do Antigo Regime, da sociedade de ordens. O que vejo de bobagens por aí...



Portanto, não creio que a situação melhore, pelo contrário.



3) Ao longo dos séculos o cristianismo católico marcou profundamente as artes, o que pode ser visto nos afrescos de Giotto, Fra. Angélico, na Capela Sistina, na Divina Comédia de Dante, Ticiano, Veronese, Caravaggio, Tintoretto e em inúmeros outros artistas que poderiam ser citados. Hoje vivemos um período artístico marcado pela extrema presença da subjetividade como paradigma, o que não raro tem como conseqüência uma espécie de estética do “feio”. Estaríamos vivendo uma crise do “Belo” decorrente do niilismo subjetivista, ou seja, o abandono do conceito de Transcendência como paradigma da criação artística?



Ricardo da Costa – Há muito tempo! Vou contar uma história, para exemplificar. Nesse semestre eu estou lecionando uma disciplina no curso de Artes da Ufes, a convite daquele Departamento. “História da Arte I”, a arte no mundo clássico e na Idade Média. O gosto médio dos alunos é terrível! Oscila no mundo que Umberto Eco (1932- ) descreveu em sua História da Feiúra. O grotesco, o disforme, o medonho. Tudo consideram lindo. Uma menina, linda e agradabilíssima, um dia entrou com uma camisa com uma foto do Nosferatu, vampiro do fantástico filme expressionista alemão do mesmo nome (1922).



[1] Sidney Silveira, “Uma indagação do Papa Bento XVI”. Internet, http://contraimpugnantes.blogspot.com.br/2010/09/uma-fala-do-papa-bento-xvi.html
[2] Projeto internacional IVITRA (Site: www.ivitra.ua.es) do qual sou membro.





Nosferatu (1922)[1]






A menina obviamente não assistiu o filme, mas disse que a figura do Nosferatu era maravilhosa... Diante desse quadro, como eu poderia explicar a beleza da transcendência dos ideais gregos? A harmonia, a adequação das partes, a proporção? Não consegui. De modo algum. TODOS, literalmente TODOS os exemplos que eles tinham em mente eram horrorosos. E a beleza da luz das catedrais medievais? O conceito de Belo? O Belo como Bem platônico? Ininteligível. Eles não compreendiam sequer o conceito de fruição. Considerar o feio belo é um traço característico da decadência de nossa época. O problema maior é que a negação do Belo também ocorre dentro da Igreja. Por exemplo, a Sala Paulo VI no Vaticano tem obras verdadeiramente fantasmagóricas – os católicos da velha cepa diriam demoníacas.






Escultura demoníaca na Sala Paulo VI, Vaticano. A informação oficial do Vaticano é que a escultura representa Cristo (!!!) se elevando a partir de uma cratera rasgada por uma bomba nuclear; uma explosão atroz, um vórtice da violência e da energia.






Concerto de música clássica na sala Paulo VI.



4) Comente sobre as grandes marcas da cultura medieval como as iluminuras, os mosaicos bizantinos, os vitrais e a arquitetura gótica, o canto gregoriano e o canto polifônico.



Ricardo da Costa – Contemplar in loco a arte medieval é uma experiência maravilhosa e inesquecível. Vi uma catedral gótica pela primeira vez em Freiburg, em 1999, a única igreja concluída ainda na Idade Média.



Nunca vou esquecer esse fato em minha vida. Quando lá estive, havia um imenso painel, um poema de um escritor da cidade, que comemorava a solidez da Igreja: durante a II Guerra, a cidade foi bombardeada pelos aliados (um bombardeio noturno que devastou tudo – exceto a catedral!). Os vitrais não se quebraram...A profusão das cores, o espaço, o silêncio, os ecos. A onipotência. O vislumbre da eternidade.






Catedral de Freiburg (séc. XIII).




Mais tarde, em 2010, tive o privilégio de fazer uma tournée de catedrais: Canterbury, Amiens, Beauvais, Notre-Dame de Paris. Em Amiens, eu tive a oportunidade de presenciar um espetáculo, uma verdadeira viagem no tempo.



Todas as noites, a prefeitura de Amiens oferece gratuitamente um show computadorizado que é uma reconstituíção da pintura original de sua catedral. Como se sabe, todas as esculturas medievais, e também as greco-romanas, eram coloridas.



Em Beauvais, cinco canhões de luz, controlados por um sistema computadorizado, oferecem aos espectadores a iluminação da frente da catedral, com todas as cores originais. Música, um texto etéreo, explicam ao espectador os detalhes da profusão de cores que os medievais presenciavam todos os dias.



O belo no cotidiano, o direcionamento da beleza para a transcendência. Foi uma noite de sonhos.







Catedral de Amiens. Portões principais colorizados por computador.




5) Países como a França e a Espanha tiveram uma grande tradição Católica presente no âmbito da cultura. Podemos citar como exemplo na Espanha, o Barroco, com seus grandes representantes Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz, Góngora, Quevedo, Lope de Veja, Tirso de Molina, e como exemplo na França, o Gótico, com o esplendor de suas catedrais, além de um forte movimento intelectual no pós-guerra com os filósofos Etienne Gilson e Jacques Maritain, os poetas Paul Claudel, Charles Péguy, Léon Bloy, os romancistas François Mauriac, Georges Bernanos e Julien Green. Hoje também esses países são assolados pelo secularismo. Como você vê a grande tradição católica desses países em relação à crise do cristianismo?



Ricardo da Costa – A França sofreu o processo laicização a partir da Revolução Francesa (1789-1799), como sabemos. A Espanha teve a sua laicização retardada pela ditadura franquista (1939-1976), pois, durante a Guerra Civil (1936-1939), a Igreja Católica foi perseguida pela esquerda, centenas de padres foram fuzilados e milhares de igrejas foram queimadas, especialmente na Catalunha. O Estado se laicizou somente após a morte de Franco (1975), mas o processo foi tão rápido como se não tivesse havido décadas de franquismo.




Salesianos assassinados em Valência durante a Guerra Civil.



Hoje, a Espanha despreza seu passado católico, como aliás a maior parte dos países europeus. Para que tenhamos uma ideia, um dos lançamentos mais importantes dos últimos anos, España, una nueva historia (2009), do renomado historiador José Herique Ruiz-Domènec (1948- ), afirma que teria sido melhor para a Espanha que a Reconquista (722-1492) tivesse acontecido do Sul para o Norte, não do Norte para o Sul, isto é, teria sido melhor que a Espanha tivesse se tornado muçulmana! Isso dito sem meias palavras.[1]



Trata-se de um notável exemplo de como a Europa lida mal com sua tradição católica, e de quão forte tem sido a expansão islâmica atual. A curto prazo, a tendência é o encolhimento cada vez maior da Igreja Católica e o fortalecimento do Islamismo. Eu já tive a oportunidade de comentar os aspectos filosóficos dessa negação do passado em uma palestra (transformada em artigo) intitulada As raízes clássicas da transcendência medieval.[2]


quinta-feira, 19 de julho de 2012

MARIEL REIS: POEMA




O CÍRCULO



Não se exaspere com a morte.

É apenas uma palavra -

Mesmo cava dentro do peito -

Repleta de sons agudos.

Não, não se intimide

Com o susto

Embora parte do meu rosto

Permaneça indecifrável

E repouse, nessa sala,

Sob o escuro.

MARIEL REIS: POEMA




A FONTE



A fonte incessantemente

Murmura o seu nome,

Nada interrompe

Suas mil línguas

De lavrar na pedra

A promessa da eternidade.

Se amor ou o acaso

Desconheço a necessidade

De distingui-los com precisão

Porque segue marcado

Com seu brilho agudo

Dentro de meu peito.