domingo, 29 de abril de 2012

PEDRO DU BOIS: POEMA


(Felipe Góes)


VIVER

Não deixam
sua morte
expiar a culpa

fica vivo
e os dias passam lentos
em calendários repetidos

dizem da sua vida
o erro cometido
estão em sua porta
aberta ao mundo
real das entregas

pede à morte
o descanso
e tem o trabalho
das bruxas estéreis

estar vivo é a morte
resumida.

PEDRO DU BOIS: POEMA


(Felipe Góes)


HOJE

Hoje em portas abertas
fecho o sentido; sem contato
apago o trajeto; sem o agito
quebrado dos pedaços colo
a imagem ao sentido e repito
antiga música romanceada
em estradas percorridas; hoje
certo do regresso posto-me
à porta e com olhos de aguardo
anseio a visão do vulto
no alongar do trajeto; hoje
em respeito devido acolho
dúvidas e as espano
em limpas diretrizes; hoje
absorto na realidade da casa
fecho as portas e me recolho
no instinto anterior aposto
ao dia interior do futuro.

PEDRO DU BOIS: POEMA


(Eriberto Chagas)

 

DIFERENCIAÇÃO

Heróis inexistentes simbolizam
glórias não alcançadas
pela divindade obstruída
na condição terrena

heróis mundanos conservam
da divindade a ânsia
de etéreas transfigurações
dos deuses destituídos
da glória inalcançável

desfeitos em remediadas vidas
gestam arremedos de redescobertas.

PEDRO DU BOIS: POEMA


(Eriberto Chagas)


PAGAMENTO

Ao interlocutor digo sobre a ausência
das sementes lançadas pelo caminho,
do rastro deixado em terra fina,
na grana verde pisoteada: sobre meus
sentidos ignoro o rumo, do traço
apago a passagem. Da espera me digo
anômalo peregrino e do amor
- no plural - acho meu canto: minha vida
consentida é esboço do mundo amarelado,
velho para aventuras, fundeado ao largo,
submerso em pontes, decodificado além
das paixões em ruínas havidas da casa
adquirida em anos perdidos da família
na comiseração do corpo. Como cidadão
trago o mudo grito de satisfação e honra.
Da guerra a medalha circunscrita ao peito.
Sou ninguém e aos ouvintes - poucos -
declamo a vida em versos. O restante
pago pelo prato de comida.



PEDRO DU BOIS: POEMA


(Eriberto Chagas)


CONHEÇO

Conheço da casa o centro
onde elementos se refazem
em versos. O som da verdade
e o conversar dos deuses aproximados.

Pertenço a ela e sou a constância
do pensamento linear das famílias
construídas no abafar das mágoas
em entrechoques diários: margens
do cerco ao futuro descompasso
de quem vai embora.

Sei da casa a hora derradeira dos encontros
e da chegada do estranho que me transforma:

a unidade rompida pelo estrangeiro
e a visão adiantada do progresso.

Tenho na casa a incerteza de um dia
ter estado junto e feliz.

PEDRO DU BOIS: POEMA


(Jb Lazzarini)

LUGARES

Evito os lugares
altos

busco na planície a certeza
de estar cercado

conheço da terra a altura
necessária ao estabelecimento
dos limites

no alto o pássaro transita
em declínio. No chão a fera
ostenta a vontade

- pertenço ao solo inconcluso
das certezas incomunicáveis.

PEDRO DU BOIS: POEMA


(Jb Lazzarini)


TARDE

Nada espero da tarde
o anoitecer (manto)
mente sofrimentos
nos encantos (tantos)
perdidos após a hora:

manhãs iniciadas
frias em após auroras
desconhecem as luzes
do impedimento: crescer
e se fazer tarde (passagem)
em lamentos.

sábado, 21 de abril de 2012

AFFONSO ROMANO SANT'ANNA: POEMA


(William Blake)


PAREM DE JOGAR CADÁVERES NA MINHA PORTA


Parem de jogar cadáveres na minha porta.

Tenho que sair
                         – respirar.
Estou seguindo para os jardins de Allambra
a ouvir o que diz a água daquelas fontes
e acompanhar o desenho imperturbável dos zeliges.

Não me venham com jornais sangrentos sob os braços.
Parem de roubar meu gado, de invadir meu teto
e de semear pregos por onde passo.

Estou em Essaouira, na costa do Marrocos,
olhando o mar. Ou em Minas
contemplando as montanhas ao redor de Diamantina.

Não me tragam o odorento lixo da estupidez urbana.
Parem de atirar em minha sombra
e abocanhar meu texto.
Estou tornando a Delfos
naquela manhã de neblinas
ouvindo o que me diz o oráculo em surdina.

Ainda agora embarquei para o Palácio Topkapi
frente ao Bósforo
quando tentaram me esfaquear na esquina.

Jamais permitirei que quebrem as porcelanas
e roubem a gigantesca esmeralda na real vitrina.

Não me chamem para a reunião de condomínio.
Estou nos campos da Toscana
onde a gigante mãos de Deus penteia os montes
e minha alma se sente pequenina.

Dei de mão comendas e insígnias
não tenho mais que na praça erguer protestos
e distribuir esmolas não é mais minha sina.
Acabo de entrar no Pavilhão da Harmonia Preservada
e me liberto
                           – na Cidade Proibida da China.

Não adianta o clamor de burocráticos compromissos
nem vossa ira. Tenho oito anos
saí para nadar naquele açude atrás dos morros
e vou pescar a minha única e inesquecível traíra.

Parem de jogar cadáveres na minha porta
na minha mesa
                         na minha cama
dificultando
                   que alcance o corpo da mulher que amo.

Afastem de mim
                          o meu
                                      o vosso cálice.
Impossível ficar no tempo que me coube
o tempo todo
preciso repousar num campo de tulipas
reaprendendo a ver o que era o mundo
antes de
       como um Sísifo moderno
                                             desesperado
julgar
          – que o tinha que carregar.
  

Sísifo desce a montanha. Ed. Rocco.




AFFONSO ROMANO SANT'ANNA: POEMA




UMA VOZ DE MUEZIM


Uma voz de muezim às seis da tarde

passa pelas pirâmides

                                   de Quéops, Quéfren e Miquerinos

e eu a sigo

como uma andorinha na boca do deserto.



A noite tomba sobre a cidadela do Cairo.



Aguardam-me amanhã

tumbas de faraós, façanhas

que há muito espantam

meus irremissíveis olhos escolares.



Já deveria ter-me acostumado

de tanto haver queimado

a retina em pergaminhos

e esfolado a alma

nas pedras ásperas da história.



À beira do deserto, à noite

                                                      aguardo

uma outra voz

um outro canto

que com o orvalho da manhã

recomponha

                   meu fatigado coração.



Sísifo desce a montanha. Ed. Rocco.


AFFONSO ROMANO SANT'ANNA: POEMA


(Jan van Eyck)


NA BOCA DO DESERTO


Estava indo, há muito, para o deserto
e não sabia.

Antes, ao revés, julgava caminhar
das pedras para o bosque
lugar de onde o mel e o vinho jorrariam.

Bastava fazer a travessia.

Em alguma parte passei por algum oásis
mas era para este destino de pedra
silêncio e pasmo
que me dirigia.

Os beduínos há muito compreenderam
o que eu não compreendia:
apenas nos momentos entre pedras, cabras e camelos
olhando ternamente o fim do dia.

A tenda é provisória.

Eterno
            só o áspero horizonte de pedra
e a poesia.



Sísifo desce a montanha. Ed. Rocco.



AFFONSO ROMANO SANT'ANNA: POEMA


(Ilha da Páscoa-Chile)


TENHO OLHADO O CÉU


Tenho olhado o céu
em várias partes do mundo
com o mesmo pasmo infantil.

Não tenho sequer a sabedoria dos astrônomos astecas
dos babilônios e egípcios
                                        – mas olho.
Inclusive alguns eclipses. Olho
e escrevo.

                            No papel
surgem constelações
                            igualmente inexplicáveis.



Sísifo desce a montanha. Ed. Rocco.








AFFONSO ROMANO SANT'ANNA: POEMA


(Alexandre Cabanel)



VIDA SECRETA



Talvez eu não seja uma pessoa

senão

              o simples lugar

de um errante desejo

e aquela fêmea airosa que passa

expondo coxas, cabelos e hormônios

talvez não seja mais

que outro lugar-comum

do mesmo desejo latejante.



A tartaruga, os pingüins, o crocodilo

ou a famigerada bactéria

formas são

de algo que os pulsa e move.



Assim a vida se exaspera

contida em suas formas mais secretas.

Olho essa árvore na calçada

ninguém a vê, a vida urbana segue feroz

indiferente, e ela ali pulsante:

uma volúpia contida

percorre

suas raízes inquietas.





Sísifo desce a montanha. Ed. Rocco.




AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA: POEMA


(Guignard)


AS NUVENS

As nuvens
não têm preocupação estética.
Sou eu
que as organizo
para meu regozijo esperto.

Elas simplesmente se desfazem
e nem disto sabem
mas eu as estudo, eu as apuro
como Turner
e alguns poetas
que organizaram o entardecer.

A natureza
não tem preocupações morais.
A natureza não mata
nem odeia.
                        Ou melhor:
mata e ama
de igual maneira
e todo movimento
é desejo
             de viver.

A morte
é apenas uma forma estranha
da vida
            se refazer.



Sísifo desce a montanha. Ed. Rocco.




AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA: POEMA


(Pieter Brueghel)


DEPOIS DE TER VISTO


Depois de ter visto o voo da águia
e do albatroz
                                    desenhando
sua fúria sobre o azul

depois de ter visto o tigre
o jaguar
                        e o lobo
dominarem as estações
e as armadilhas da forme

e de ver as presas
(posto que abatidas e sangrando)
heroicas renegarem seu destino

a mim me tocou
viver numa época em que miúdos seres
rastejam sem visão no pó do instante.

Apagaram de seus olhos
                                                o horizonte
e não mais desatam asas sem seus flancos.

Não sabem. Nem querem saber
que houve um tempo
em que a vida ia além
do inevitável escombro.

Comprazem-se com o espelho
                                                    estilhaçado
em miríades de miragens.

De nada adianta
se lhes trazeis notícias
de outros mundos e paisagens.
A cera nasceu-lhes nos ouvidos
apenas suas vozes estridentes
em uníssono ouvem.

Banqueteiam suas fezes em alarido
como se ouro fossem
e dançando à borda do abismo
se rejubilam
                     – com a vertigem.


Sísifo desce a montanha. Ed. Rocco.


quarta-feira, 11 de abril de 2012

W.J.SOLHA: MARCO DO MUNDO EXCERTO I


(Pieter Brueghel)


Abre-se o abismo de pedra e susto
e,
de cristal e prata,                                                                                                      
duzentas e setenta cataratas,
como as de Foz do Iguaçu, na Garganta do Diabo,
cavam, sem problema, a fundação do  poema,
com grande largura,

... mas sem descer cem metros no chão da literatura.

Sendo,
então,
a Foz,
na profundidade,
pouca,
The Angel Falls,
da Venezuela,
com sua milha louca,
é a opção.
Mas é à Queda de Lúcifer
propriamente dita
e a seu eclipse
no Apocalipse,
que o Poeta – nela espelhado - se apega,
      no lapso em que o afrontoso, presunçoso anjo, arrasta a Virgem - de quem quer  o Filho - na réstia da Via Láctea,
mas é detido na vertigem ciclônica da estelar rosácea,
pelos clarins,  
clarões,
trompas,
trombetas,
trovões
e toques de rebate,
de São Miguel Arcanjo, que avança pro combate,
mais o irado exército alado,
ao que Lúcifer se ouriça,
mar agitado,
terra tremente,
céu de tormenta,
na liça,
e o encontro entre os dois estronda, um milhão de vezes mais poderoso do que o de Mormionda,
até que,
no sismo,
cai o “Portador da Luz” como estrela
e abre-se um poço no abismo.



W.J.SOLHA: MARCO DO MUNDO EXCERTO II


(Bosch)

O rio,
que passa sob a ponte em que a farândola avança,
entra na base da Torre
e,
inseguro,
se lança,
no escuro,
até o vão que se abre em seu leito,
como que de Procusto,
e então cai,
branco de susto, 
no oco do mundo,
até a desintegração... tétrica... sobre centenas de turbinas
de gigantesca hidrelétrica.


E aí há um pouso de anjos (com asas como mãos postas às costas).

Há um peixe que nada no nada,
e um homem, 
com flecha no ânus ( parece que sem grandes danos),
que desce uma escada.

    Um polvo move os tentáculos
    e sobe,
aos arrancos,
no belo espetáculo pra saltimbancos,
em que se incluem fumaça e certo ar de ameaça.
    
E há o desfile da cáfila
andrófila,
que segue – quando consegue -  um bode albino ( com grou e pavão no cachaço ),                                                  
levado por um menino.

O diabo, 
levado da breca,
bate o pé e toca rabeca,
e, de seu baço, a cada compasso, salta-lhe um Bute, que leva seu chute,
salta-lhe um Fute,
que o pega no muque e logo o deglute.

E Calderón pregunta, 
risueño:


¿Qué es la vida?


Sueño.



W.J.SOLHA: MARCO DO MUNDO EXCERTO III


(Miró)

Embora espere tanto de si quanto de um pianista de bar
ou de escultor de vitrina,                                                            
o Poeta tem,
à custa de disciplina,
a mente tomada de dados,
vindos de todos os lados,
e,
em atividade,
febril, feito complexo fabril que inclui minas, bancos, shoppings, restaurantes, hospitais, laboratórios,
exige que as rimas sejam reais obras-primas e em chapas de aço – como de esculturas monumentais – e, de quebra, também de pedra,
como o vigoroso Muro da Reforma,
em Genebra.

Sem sigilo:
rimas como pirâmides:
ex nihilo.
Rimas ricas
como de haicai com heaven,
     not sky.

Quer versos... em pentagramas,
e eletroencefalogramas.

Não quer um sequer como São José na Sagrada Família:
triste,
last
and least.   

Porque sabe que quando se empavona, 
é mais pavão  o pavão,
e que,
quando ruge,
é mais leão o leão.
E que também
na arte,
o todo é sempre menor
do que sua melhor parte.

Mas,
se tango é exagero argentino,
o do Poeta é este,
traquino:
sabe que em todo poema – isso já vem do sistema - há estrofes marias-vão-com-as-outras, cruzetas, que são como rodas traseiras das carretas,
que apenas levam peso, seguindo a dupla dianteira.
Mas sua exigência
primeira
é a de que todo verso tenha igual importância e, por igual, se eternize:
nada de corte de quilha n´água,
que na hora se cicatrize.

Quer rimas de trens com metrôs, Gestas e Dimas.
Quer que nuvem rime com fumaça, Graciliano com Graça, assim como Manet com Monet, o que é com não é.

- A água
de pedra,
jorra do jarro
de pedra,
sobre a pedra
de pedra.                                              


-   Se Hunger rima com anger,
carcará rima com fome,
por isso é que pega,
mata
e come.


O Poeta sabe que esta é nossa sorte:
Independência...
ou Morte!


Sabe que os  santos,
jurássicos,
sempre buscam,
nos quadros sacros,
a  perfeição over the rainbow,
mas ela também pode estar em Colts,
pois a verdade,
barroca,
é que defeitos são efeitos perfeitos da realidade,
que é louca.

- O sopro que dá vida a clarins
é o mesmo da flatulência,
daí o verso de Dante,
cheio de irreverência,
em que ele diz,
sobre um capeta:
Ed elli avea del cul fatto trombetta.


- Veja a ponte pênsil como golpe de mestre:
artifício fácil
que listra,
grácil,
o precipício,
como a faixa de pedestres,

- Veja o carisma da fé como a cisma que o  cemitério cria – com seu  mistério -  na sua área.

Segundo o sertanejo escolado,
porém,
Deus já fez o céu bem alto,
foi pra viver sossegado.
E a verdade,
nua
e crua,
é que
a Terra,
vista da Lua,
não tem trovões, furacões,
raios, vulcões,
nem canhões.

Nada.






W.J.SOLHA: MARCO DO MUNDO EXCERTO IV


(Edward Burne-Jones)

Sente-se,
no entanto,
o Poeta - mais do que a fêmea - alma gêmea da Terra,
florindo, produzindo cantos, leões,
além de libélulas, versos, faisões
e,
novamente,
trovões
que passam - em nuvens - pela estrutura dura,
da construção,
como heróis pela aventura,
até que se retêm na vidraça,
que um simples olhar ...  ultrapaça.                      

Aí,
num dia
sobre quatro  noites macias,
chega o Imortal

e diz,
teatral:

Por que,
milênios após Homero,
parte pra essa obra,
se o que existe no mundo, em versos,  
já sobra?

O fato de que a moça não pode,
mais,
ser menina,
e de que Inês é morta
é mais do que você suporta?

Por que versos
se nesse universo,
dos mais temidos,
colinas já estão niveladas
e os vales bem preenchidos?

Não vê que o poeta  é um deus...  com templos que já são museus?

Não vê que, feito impressora, ele faz cópia de cópias de versos de  tempos idos,                                                                                  
a que ninguém,
mais,
dá ouvidos,
porque Álef  - Boi – já tem todos os bois,  e Beth – Casa -  todas as casas,
e que o script, stricto sensu - enciclopédica e criticamente denso -  está escrito,
e
o que não está,
proscrito?



O Poeta,
no entanto,
diz que,
se não verseja,
sente-se o K. de Kafka:
enquadrado numa lei
que não foi pra gráfica      

... e que Beth segue Álef como  Cão segue Gatilho,
e a diferença entre Mickey e Minnie pode ser, só, de cílios.

De todo jeito,
nada parece mais solto do que um planeta,
que jamais foi livre.

É,
mas a Terra 
vive...

... e eu vi a originalidade – apesar dos is - agarrada à unha por arquitetos art nouveau,  como Domènech i Montanes
e Gaudí i Cornet,
na Catalunha.