segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

ENTREVISTA COM O PINTOR (ILUSTRADOR) GABRIEL FERREIRA




1 – Quando ocorreu seu contato inicial com a pintura?



Comecei a desenhar aos 3 anos de idade, contudo, só aos 8 que o desenho se fez uma predileção pessoal e uma tendência artística. O contato com a pintura começou com o lápis e as tintas secas, pois o desenho sempre foi e é a minha maior paixão. A pintura, como se vê hoje em meu trabalho se deu quando eu fui “batizado” artista com as primeiras exposições. Então, como algo bem natural e de forma “autodidata” iniciei o contato com a têmpera e o acrílico por serem tintas de secagem rápida, uma vez que, eu estava habituado a ter resultados rápidos e trabalhos prontos para serem expostos.


2 – Quais são suas influências no campo das artes plásticas?


Na pintura sempre tive paixão por grandes clássicos da pintura mundial e posso aqui destacar alguns que, de fato, me despertaram e até hoje me despertam o entusiasmo, como Cândido Portinari, Carybé, Rodin, Carlo Barbosa, Salvador Dali e Di Cavalcanti. Mas, não posso deixar de citar artistas que estão próximos a mim e exercem influência até hoje, como Pirulito e Suzart, ambos do Recôncavo da Bahia.



3 – Suas telas mesclam elementos religiosos de origem afro, além de uma dimensão metafísica no que se refere ao amor em sua dimensão corporal. Comente essa perspectiva de sua pintura.



Tenho muito afeto e encanto pelas religiões de matriz africana, para além de ser um viés familiar, cultuo os efeitos sincréticos que o povo brasileiro produziu para poder sustentar as suas crenças. Quando se fala em artes plásticas e, principalmente do meu trabalho, evoco o corpo para expressar tais manifestações, pois, quando misturo capoeira, samba de roda, candomblé e até mesmo erotismo, sinto nesse bojo cultural e multifacetado, muita dança, poesia, música e espiritualidade; uma espiritualidade que está intimamente ligada à paixão que se tem pelos cultos às entidades, aos pares e à coletividade que os faz agregar.



4 – Sua pintura tem se relacionado tematicamente com a poesia. A relação pintura poesia seria dicotômica, ou há uma dimensão comum a ambas as artes?



As linguagens artísticas parecem ter nascido do mesmo ventre, pois, é forma que o ser humano se dispõe a se expressar quando não o faz por forma e imposição do “modo de produção capitalista”; assim quando se fala de poesia e pintura a dicotomia só se abriga no que é bom e ruim - postos frente a frente. O meu trabalho está alçado à poesia por conta do grande universo imagético que a literatura proporciona. Quando a leitura se faz percolada por encantamento, se materializa um mundo cheio de imagens; assim, me aproprio dessas imagens para produzir, pois, não há inspiração para artes plásticas que não seja acionada após uma boa leitura. Por isso tenho poesia, contos, cordel e até mesmo a oralidade como lastro para a minha pintura. Sou um ilustrador!



5 – Como você vê a dimensão figurativa e abstrata na pintura?


Não sou um bom entendedor dessas questões figurativas e/ou abstratas, sou mais um produtor de arte e, no meu labor pictórico nordestino, entendo que a representatividade artística tem de haver, antes de tudo, identidade. Uma figuração mal feita é tão feia como uma abstração mal feita, independente de quem a realizou. Estou fixado na arte que comunica alguma coisa, na arte que fala por si só sem precisar de muitas notas de roda-pé e explicações detalhadas. As questões que se relacionam à arte contemporânea ainda não me foram absorvidas, uma vez que, dentro das discussões de conceito artístico a introspecção do artista o distancia das “causas”. Artisticamente sou par da militância, pois, o artista também provoca transformações sociais e não precisa levitar ou querer ser considerado um extraterrestre para ser reconhecido. Pés no chão e militância política fazem um bom artista, também. Dessa forma a dimensão que encaro a cerca da figuração e da abstração é de que a arte tem que ser de responsabilidade e não um campo para aventureiros.


6 – A pintura ainda estaria sobre a influência determinante da arte abstrata? Por que tantos pintores optam por essa vanguarda renegando de certa forma a figuração como uma dimensão quase que secundária nas artes plásticas?


Como havia mencionado na resposta anterior, esses assuntos me fogem um pouco ao entendimento, pois, não parto para essa “bola divida” com outros artistas, sejam eles vanguardistas e tradicionais (como eu!) e, também não estou no hall destas discussões, infelizmente... estou sem tempo (risos). Mas, o que posso inferir é relatando que faço o meu trabalho – seja semi-abstrato ou figurativo – ligado ao texto; então, para onde o texto me levar eu vou, sigo a trilha das letras e dos arranjos literários que elas desenham, dessa forma fico feliz com o meu trabalho e agradando – ou pelo menos tentando – às pessoas que se dispõem e me entender (risos).



GALERIA GABRIEL FERREIRA







quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A POESIA DE NYDIA BONETTI E A PINTURA DE JB LAZZARINI

(Jb Lazzarini)



uma canção antiga na língua da tarde


sem alarde

invade

vidraças

dissoluta atravessa cortinas

dissolve véus

vestidos

vestígios do dia - quer tocar na pele

nua

que se insinua

ao ouvir a canção - epifania - estrelas

em meio aos escombros

lua cheia - qualquer ruído será

música



segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

ANDRÉIA CARVALHO: POEMA

(Hans Baldung)


anátema



não falarei caminhos para o solstício. todos caminham. nem mares equilibrados. todos velejam. meus bosques contados já se movem por si mesmos.


trincarei escalas zodiacais. subirei bem alto para o pousar sibilante. soprano astro. soprarei teus tímpanos selados. notas que me ultrapassam as vogais. lá no alto onde as fixas se aniquilam. pista giratória de nebulosas. darei três cortes em tua face dourada. enquanto me carboniza a máscara. narciso vertido em plumas de constelação violácea. exposta a medula suicida. pendulares para a terra. na inércia avessa terei asas. não para voar. para derretê-las. eclipsando o teu calor simbionte.


corpo de radiação.


descerá do teu altar infecto de diamantes. e cairá comigo. um leito de carvão uma noite e uma madrugada. um pasto leitoso escuro amargo em clarão de cordas no sono dos metais adulterados. pedra sutra. estacas musicais. missal planetário na argila. barroca mulher vestida de sol. lua na música que os anjos não ouvem. doarei tua sinastria aos morros onde a estrela mais crua entontecerá tua cantoria.


anaconda.


ergo meu dorso esteira eclipsando a letra hiperbórea de tua escrita pirofágica. teu testamento iridescente. tua casa será minha casa. tua casca será minha casca. tu te entornarás. já te disse no pio das claraboias. já te fiz levitas haleluia leão dormente leão serpente leão de judah. luz do mundo. bobina de um corpúsculo alucinógeno eriçando o cabelo icosaédrico da matemática de um poema concreto.


evoé. como te direi?

à penas:

sol.

ANDRÉIA CARVALHO: POEMA

(Bouguereau)


receituário


há de se criar a palavra

bela


tão afeita para a

beleza

que no rigor da morte

esculpissem seu

semblante

em veludo & pedra


musgo reinventado


a face

dura


puro cristal

de celan


mumificado

sábado, 21 de janeiro de 2012

ROMÉRIO RÔMULO: POEMA

(Felipe Stefani)



não consigo me livrar desse poema


tenho medo.

o medo de viver sob essa pele,

o medo das mulheres que me absolvem do pecado,

o medo do câncer que termina em morte.

medo das estradas sem caminho,

do envolver o espanto do meu olho

e derivar os poemas da noite.

medo dos cachorros é o que tenho.

tenho medo dos cavalos,

da beleza que destilam

quando eu não consigo a coragem de vê-los.

tenho medo do olhar,

de todos os olhares:

a vida lhes pulsa o meu medo

e só me cabe retê-los um pouco.

o grande medo,

o medo que estarrece,

o medo que me promete a explosão da carne,

é o medo da pele que me come

e eu não vejo.

não sei da vida,

não sei da morte e suas atrofias

e me revelo no medo.

tenho medo da loucura,

das mentiras e verdades que me roem,

do meu sono e da minha insônia.

o suicídio é um alento carregado de medo:

o medo do fracasso.

a coragem

é o arremedo

da minha clave escondida.

de todos os medos

arranquei meu dia

e não consigo me livrar desse poema.





JEAN N. B. MOURA: POEMAS

(Gabriel Ferreira)



Saldo incógnito

Basta-nos o decréscimo de dias

de um saldo incógnito

para que passar metade

de uma vida

pensando noutra vida

alimentando-se como um glutão na confeitaria

da palavra


conclamo botar o sobrenatural nas forças dos braços

ir avante

ciente de que não estamos distante

da magnitude da flor e do cacto


Corpo vivido


O corpo vive na epiderme construída com a aridez das horas

Já passaram muitas horas

estou quase vinte anos mais idoso

do que o infante que mordia tímido as palavras

para não tirar o esmalte materno dos dentes


Nada permanece em mim

que pode ser revisto e retomado

a pele das horas está anciã

as antigas meninas do jardim da infância

doravante gargalham erupção que vem debaixo

e faz espumar os seus belos e carnudos lábios.


Nada absolutamente nada

retorna inteiro ao corpo

a sobra das horas vividas

é espólio

guardada para ser saqueada

a qualquer instante na memória

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

VERTIGEM E SIGNIFICAÇÃO: UM ENSAIO DO FILÓSOFO EDILSON PANTOJA

(Franz Kline)


Consideração (esboço) sobre a relação entre filosofia e literatura


Eu vejo filosofia e literatura como vejo cada um dos demais fazeres humanos: eu as vejo como tentativas de significação. Como tudo que é humano, elas brotam de uma vontade de sentido. É que, me parece, cada ato humano, desde os mais simples da vida ordinária até os mais refinados e complexos, têm como função imediata o seguinte: revestir de sentido aquilo que por si mesmo não tem: a existência.

Como bem o constataram sábios da envergadura de um Charles Sanders Peirce, a cultura, de modo geral, é um grande e complexo sistema de signos. Nela tudo significa. Qualquer elemento pode conduzir a uma pista do que se passa no grande comércio das relações humanas. Mas não é por esse caminho de pensar atos culturais como elementos de comunicação, nesta perspectiva, o que me leva a esta incursão peculiar pela, digamos, semiótica. Para mim, a cultura, a civilização, os feitos humanos, corriqueiros ou grandiosos, são, antes de tudo, sintoma. Sintoma de uma ausência: a ausência de sentido para a existência. São, ao mesmo tempo, tentativas de preenchimento desta ausência. Daí eu ter dito acima: tentativas de significação.

Esta Ausência, este Nada, espreitava o homem, mal ele deu o primeiro passo para fora da Natureza. E o próprio homem não será outra coisa senão uma consequência desse encontro e desse convívio. Pois, como dito, a cultura, a história, enquanto sintoma, é também o horizonte no qual o próprio homem se faz e, fazendo-se, constrói formas de proteção contra aquela Ameaça Silenciosa. Primeiro vieram as lanças e ferramentas de pedra, as primitivas comunidades protetoras, a linguagem, que dá ao homem a ilusão de não ser só... Depois vieram mais instrumentos técnicos, também os deuses, os mundos além, as metafísicas, as artes, a filosofia, a ciência, enfim, a Civilização. Não obstante, a Ausência continua aí. A história da civilização é a história desse convívio e dessa luta. As especulações atuais acerca da clonagem humana ou mesmo da chamada inteligência artificial, em que já se cogita a substituição do orgânico pelo sintético, ilustram bem o que quero dizer.

Mas a filosofia e a literatura, como a arte em geral, não são tentativas de significação no mesmo nível dos atos ordinários, da técnica ou da ciência. Elas não são um mero fazer. Ao contrário! Enquanto se utilizam da linguagem para representar o próprio homem em seu trânsito significativo, elas se constituem meios privilegiados de significação. Meios nos quais o homem pode se ver, sondar seu destino e enfim aceitá-lo.

Diferentemente de todos os demais modos de significação, filosofia e literatura não são necessariamente rotas de fuga, mas meios possíveis de condução do homem ao seu ser-próprio, ao seu destino.

Destino, conforme aqui concebido, é o ser-próprio do homem. É o Não, é aquela Ausência que desde o início o espreita e o obriga a significar. É bem verdade que o homem pode nunca reconhecê-lo. Pode também, reconhecendo-o, recusá-lo e empreender rotas de fuga em busca de garantias, como, aliás, tem feito a maioria das vezes, seja na história da espécie, seja na história do indivíduo.

Em qualquer dos casos, porém, seja aceitando o destino, seja recusando-o, o certo é que daquele Não continuará a brotar a cultura e a história. O que mudaria, certamente, no caso da aceitação, seria a saúde do homem, a relação dele com a vida. Mas este talvez seja um passo impossível. É que ao ser-próprio não se chega antes de uma séria decisão, de grandes recusas, e de uma revolução pessoal.

No caso da literatura, o trânsito para o destino ou para longe dele é mostrado por meio de imagens, onde se representam, com personagens e situações, os homens na busca por significados, estes aqui pensados como garantias contra aquela Ameaça. No caso da filosofia, a questão do destino é posta em evidência mediante um trabalho conceitual, abstrativo, em que se busca compreender os próprios fundamentos da busca, isto é, da essência do significar, bem como apontar caminhos, propostas de sentido. Em ambos os casos, seja com o exemplo, seja com o conceito, está em jogo a perspectiva essencial dessa luta e dessa busca.

Mas essas distinções não opõem necessariamente as duas formas de representação, como, aliás, nos mostram a história de ambas.

Em todo caso, o destino do homem, o ser-próprio, tem a ver com a existência. Mas a mera existência, como suposto, não implica necessariamente a aceitação do destino.


segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

ROMMEL WERNECK: POEMA



NIX


“A noite clareia os olhos do cego”

Hilton Valeriano


Ô, Noite, Noite, uma deusa na eterna primavera

Sorvendo em lágrimas sonhos passados sem destino

Veludo negro voando sem tempo, sem espera



Que cede a glória a período doce e matutino

Ah! Dia, Dia que a vida do Sol canta e venera

Teatro rubro de lúcido fogo cristalino



Porém ao filho soturno da Mãe Melancolia


É sempre Noite suprema, jamais chega a ser dia




quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

ANTÔNIO ADRIANO MEDEIROS: POEMA

(Giulio Pipi)




APRESENTAÇÃO DE MARIA CABAÇO




"O que é bom tá guardado!


O que é bom tá guardado!"



Eu sou Maria Cabaço

da Resistência de Aço

– Sou Reserva da Pureza!

Não gosto de safadeza!

Não ando com rapariga!

Em minha bandeira Négo,

como flor da Paraíba,

a natureza inchirida

das muléres sem nobreza!

Minha fulô tem pureza,

minha rosa é uma cruz!

Grandes lábios de tesoura

– Aqui só entra Jesus!

Juro que corto à navalha

a rola de algum canalha

que me afaste da Luz!

Macho ou feme num seduz

priquito prenhe de Fé!

É pior que Lucifé

o comprador de cabaço!

– Eu ainda me desgraço

mas deixo um sem tripé!

Num pode ficar de pé

quem faz a Obra do Cão:

comprar cabaço inocente

na miséria do sertão...

Eu juntava toda a réca

e assava uma bisteca

na fogueira de São João!

Arde a Santa Inquisição

com o seu fogo sagrado

em meu coração cristão,

no meu cabaço intocado...

O Sol queimando o Sertão

manda um recado pro Cão:

– “Vamos te assar, Danado!”

Meu cabaço tá guardado

pra quando eu chegar no céu.

Por direito é de Jesus,

mas dou primeiro a Miguel

porque foi a sua Espada

que mandou toda a cambada

de diabos pro beleléu!

Meu coração é fiel

mas sou mulher verdadeira.

Negociei com Jesus

pois a carne é traiçoeira:

e quando me dá a louca

meto uma rola na boca

ou abro a porta traseira!

ANTÔNIO ADRIANO MEDEIROS: POEMA

(Giulio Pipi)



UMA PRAGA SEXUAL

Praga da gota serena

quando não cega aleija.

Catimbó pra ter valor

leva o tempero da inveja,

e poeta de segunda

os veros versos sobeja.



Quando o sertão abreja

c'uma chuva de três dia

marreco no céu voeja,

faz serenatas a jia,

e vaqueiro aboiador

bota pra fazer poesia.



Quanto pega a cantoria

dá trabalho a terminar:

histórias do fim do mundo

novelo vai revelar

se o cego velho na feira

bota pra improvisar.



O leitor ouviu falar

em Chico de Bagafu?

Ou já usou um colar,

semente de mulungu?

Já viu gente se irritar

e mandar tomar no cu?



Me meti num sururu

lá na casa do Capeta.

Fui com Maestro Chiquito

- excelência da corneta

que já tocou na orquestra

do Velho Bode Perneta.



Girando qual carrapeta

menina querendo dar.

Cheia de paixão na alma,

o corpo inteiro a viçar:

se passar perto de mim

eu não posso dispensar.



A beleza de um olhar

em um rosto feminino

encanta que nem cristal

- olho d'água cristalino -

veio de lágrima, desejo,

força matriz do destino.



Quando Zefa de Rufino

deu cria à menina Rosa

choveu por bem 7 dia

lá no sertão de Viçosa;

por 3 semanas de feira

matuto foi todo prosa.



Cresceu a menina rosa

desabrochando o botão

da beleza que guardava

na forma com precisão:

seu semblante a quem o via

disparava o coração.



Ouvi dizer, no sertão,

que uma certa Benedita

- feia, gorducha e idosa -

chamava Rosa "A Maldita",

nela buscando vingar-se

da sua triste desdita.



Boneca de Afrodita

ela espetou pra Xangô;

acendeu seis vela preta,

uma galinha sangrou,

e a alma de Rosinha

ao Diabo encomendou.



Algum tempo se passou

antes da Revelação;

todos respeitavam Rosa,

lhe tinham muita afeição:

ninguém ali suspeitava

que tinha parte com Cão.



Apois foi na procissão

que Rosinha endoideceu.

Tomou cruz de mão de padre

e a todo mundo benzeu;

abriu os braço e gritou:

- "Aqui quem manda sou eu!"



Quando Rosa enlouqueceu

passou a noite a amar:

deu a matuto e letrado

e ao doutor do lugar.

Engravidou do vigário

de uma vila à beira-mar.



E mandaram me chamar

para uma internação.

Lá reinava a bacanal

- ímpetos, louca paixão -;

quem enrabava Rosinha

agora era o sacristão.



Ouvi a explicação

que sábio doutor me deu:

- "Teve uma revelação

aqui na casa de Deus:

o amor na comunhão

serviu a pobres plebeus;



mesmo os juramentos meus

ela jogou sobre o piso;

dou o meu depoimento

e assumo o prejuízo:

a beleza do seu corpo

desnudou meu desjuízo." -



Pra levá-la foi preciso

reforço policial.

Ouvi muitos palavrões

em protesto radical;

um brutamontes matuto

lá quis me quebrar no pau.



Eu consegui afinal

internar a tal Rosinha;

depois de bem medicada

ela ficou boazinha.

Está bem, a estudar

- vive insistindo em me dar,

mas não como a taradinha.



segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

ALEXANDRE GUARNIERI: POEMAS

(Franz Kline)



(cativo)

como servo, serve; como vive,

sorve; mero serviçal sem

absolvição, e sempre insone

à sombra do dono, que há de

alimentá-lo, qual um cão

desossado ou, qualquer, um

detalhe desagradável, ei-lo

anônimo esse móbile de nervos,

de ossos, que o é por si ou o

que talvez pudesse ser, se não

fosse só, a sós, esse ossário

frágil, mais outro escravo,

sem limo, sem sumo, sem caldo,

só o triste bagaço ressecado,

um astro escasso, mas tão magro

e gasto, quanto inadaptado

ao trabalho, diário e árduo,

à rotina mortal do horário.



(repartição)

os rituais estoicos do escritório, entre móveis

sólidos, ásperos e numerosos módulos, e os

funcionários, do rh ou contas a pagar, "boa

tarde", "volte sempre", as tantas cobranças que

o patrão reclama, avulsas, ouvindo a secretária

soluçar, aplicada às duplicatas, enquanto

convulsionam os números (necessário é discá-los

todos), o monstro é um patrão eletrônico, ao

invés de mãos, há troncos telefônicos; inaptos,

se matando aos poucos estes homens que

trabalham: um por um, inúteis,

caminham na calma

ao recinto sanitário, tomam pílulas diante dos

próprios rostos, projetados no mictório, findam

em suicídios tão limpos quanto burocráticos; as

máquinas permanecem a sós, sem ócio nem laços,

sem tempo, apenas relógios, sem sonho ou

delírio, apenas atrapalham, repetindo os mesmos

sinos; apenas trabalham, trabalham: com ódio.



(rendição)

nossos hábitos formulaicos,

acordar, dormir – o horário de

ir para o trabalho – de abrir o

armário; vestir-se – a vida

vista de frente, preâmbulo, sem

ângulos, sem ânimo, apenas o

sarcasmo diário, sem alarde, sem

contraste – café com açúcar; as

ruas assustam – a retina rendida

à rotina, só o cinismo insistindo ainda

o dia-a-dia – o

sono no ônibus lotado – só em

certa parcela da vida há vida —

terrível dízimo – uma ilha

vitimada nessa ciranda servil.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

PATRICE DE MORAES: SONETO


(Zichy Michály)



PECULIARIDADE


O gosto que ela tinha quando o punha

na boca era algo de invejar

as mais experientes no tratar

um phallus que entre os lábios se interpunha.



Beijava-o, sugava-o, mimava-o

de um jeito próprio, especial — amor.

Fazia desse engenho o seu labor

mais prazeroso, e, claro, isso agradava-o



muitíssimo. Mas mais agradecida

ficava ela quando permitida

fruir na boca os jatos de eloqüência



final, distribuindo-os, na sequência,

por toda vastidão de sua vida

entregue à oralidade sem prudência.



PATRICE DE MORAES: POEMAS


(Giulio Pipi)



OS “PUDICOS”

Os “pudicos”

são muito engraçados:

às vistas,

a maior das pudicícias;

sozinhos,

se depravam nas delícias...


Quem pode superá-los (inconteste)

no jogo prostituto das malícias?


PACTO MORTAL

Desembainhei a espada. Penetrei-a...

... duas, três, quatro, cinco, seis... A morte.

O assassinato foi a sua sorte.

O suicídio foi a minha ceia.


POR FAVOR

“Eu queria que você botasse.

Eu queria que,

sem pudor,

você botasse:

todas as minhas amarras para trás.

E logo depois me possuísse...

pelas frentes”.




PATRICE DE MORAES: SONETOS

(Zichy Michály)



XV

O amante que se preza como tal

trabalha o corpo amado analisando

resposta por resposta (corporal)

às perguntas que vão se processando...



Controla seu deleite pessoal

apenas com o prazer se preocupando

do corpo que conduz e pelo qual

dedica seu amar, seu estar amando...



Visita cada espaço insinuado

provando inexistir ao seu amado

qualquer indicação de preconceito.



Descansa da tarefa prazerosa

somente quando o corpo amado goza

eternidade... e após retorna ao leito.



XII

O corpo funde o corpo, funde tudo.

Funde inclusive a mente — o corpo funde.

Seu elevar de si em tom agudo

com a alma muitas vezes se confunde.



Reparo a fundição e fico mudo,

participando inteiro do desbunde

imposto ao meu perímetro. Contudo,

impeço que a inconsciência o estrague, o afunde.



Que força, que energia o corpo tem

principalmente quando o vai-e-vem

é ritmo que propõe libertação.



Quem sabe é a energia destinada

a dar a morte, sempre consagrada,

ao matrimônio com a ressurreição.




EPIGRAMA

(Nicoletta Tomas)



EPIGRAMA AO POETA JORGE ELIAS NETO


Do que se faz ou do que se espera,

da verdade dita e não ouvida,

fica a mentira

em que cada um habita.







quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

ROMÉRIO RÔMULO: POEMAS

(JB Lazzarini)




dezembro 1, 2

1.

neste dezembro eu vou pisar o estio

com toda a truculência do vazio.

2.

me declaro cavalo e pecador

temporais de um corpo inexistente.

em dezembro me caso por amor.


o corte da terra

a vida, solidão, toda impotência

caminha numa pele de novelo

onde ela rasga a carne em desmantelo

a demonstrar ao mundo abstinência.

pudera ser mais torpe e mais estrada

nos meus cavalos, encantos, aguaceiros.

a vida se acabou em quase nada.


à clara moça dos poetas

sou casto pelo corpo e suas névoas

na rouquidão das guerras que nos partem

nas armas mais sutis que nos magoam

o corpo e a alma das vertentes podres

só me abalam em terras arrasadas

de aço chucro, de cimento aspro.

você é a clara moça dos poetas.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

JORGE TUFIC: TRÊS SONETOS

(Bouguereau)



A NOITE

A noite além do véo da noite além

‘steve diante de mim. Seu corpo frio

era compacto e denso como um rio

que desce, eterno, donde a paz se vem.

Vi a noite fluídica. E ninguém

por testemunha: a noite, o desafio

das profundezas cósmicas, vazio,

sendo ela própria a nuvem que a sustém.

Qual, enfim, seu tamanho? A noite vista

da pequena janela da aeronave

sobre o mar antes verde ou de ametista.

Cobra Grande, mas logo evanescente,

enquanto se distrai muda-se em ave,

traz a manhã nos olhos de serpente.



SONETO AO DESERTO SELVAGEM

Árida a língua desse cão, deserto

do próprio osso, túnel que se deixa

passar à fúria da mais doce ameixa

rumo ao sono de pétalas coberto.

Assim a fera, lâmpago do incerto,

se lança à jugular; nenhuma queixa

da presa dócil que, sem ódio ou reixa,

nutre o verde do campo descoberto.

Não é só do deserto, mas de tudo

sobe um ar indescrito, este algo acima

do vôo do abutre, lá, silente e mudo.

Nos vegetais, nos ferros, no quintal,

onde cresta a papoula e nasce a rima,

tudo que é frágil sofre desse mal.



SONETO PARA E. M. CIORAN

É uma exceção a vida, é uma exceção

nossa dor de vazio e turbulência:

sair do nada quando tudo é ausência

da matéria que ilude o coração.

Vede o universo, o trágico arrastão

dos corpos duros, luminosa essência

que não tem húmus para a quintessência

de nossa humana decomposição.

Daí, talvez, a falta, essa rotina

de estarmos sós, tão sós que até nos cansa

a mofa, o planetário, a serpentina.

Nada além do que simples fantasia.

Qualquer estágio nutre uma esperança.

De qualquer solidão brota a poesia.







UM POEMA DE LUIS GARCÍA MONTERO TRADUZIDO PELO POETA JORGE ELIAS NETO

(Ismael Nery)


Irene


¿ Conoces ya la tinta meditativa

de la primera luz?

Mira el esfuerzo

que en la copa más alta del bosque más oscuro

raya un momento, avisa y mientras cae

forma la claridad.

Así comienza el dia.

Así también, contigo,

cobran todas las cosas

um impreciso afán por empezar de nuevo,

por ser tu compañia

quando el tiempo aparezca.



Y no es el mecanismo

oxidado de um tren lo que se mueve,

ni las maderas de la barca

están secas aún. No en todas las historias

el tiempo necesita la nostalgia.



Pero tiene la luz recuerdos que son nuestros.

Van a bajar los dioses de sus libros,

Alguien descubrirá que el mundo es navegable,

habrá dias y noches, y em la luna

de lo ya sucedido

respirará la fábula blanca del calendario.



¿ Qué haremos de nosotros

ahora que los espejos todavia

no tienen una sombra que llevarse a sus láminas

a contar hasta diez?

¿ Qué podemos hacer con lo que nos han dado?



Como una insinuación, como la piedra

interroga al estanque,

cae la luz en el sueño de la casa.

y la distancia,

esa divinidad que medita en el agua

de los puertos,

vuelve al pasado, busca entre sus mitos

un Angel sin heridas,

una nueva metáfora,

algo que no es tu nombre,

pero que yo pronuncio desde el fondo

abierto de tus ojos.



Irene

Conheces a tinta meditativa

da primeira luz?

Vê o esforço

com que uma breve linha,

na copa mais alta do bosque mais escuro,

nos alerta à medida que cai

uma claridade.

Assim começa o dia.

Assim também, contigo,

cobram todas as coisas

um vago desejo de começar de novo,

para ser tua companhia

quando o tempo aparecer.



Não é o mecanismo

de um trem enferrujado que se move,

nem as madeiras da barca,

ainda secas. Não são em todas as histórias

que o tempo prescinde da nostalgia.



Mas a luz tem recordações que são nossas.

Baixarão os deuses de seus livros,

Alguém descobrirá que o mundo é navegável,

haverá dias e noites, e na lua

do passado

respirará a fábula branca do calendário.



O que faremos

agora que os espelhos

não tem uma sombra que levar a suas folhas

a contar até dez?

O que podemos fazer com o que herdamos?



Como uma insinuação, como a pedra

interroga a lagoa,

cai a luz sobre o sonho da casa,

e a distância,

essa divindade que medita na água

dos portos,

retorna ao passado, para buscar entre seus mitos

um Anjo sem feridas,

uma nova metáfora,

algo que não é teu nome,

mas que eu pronuncio bem do fundo

aberto de teus olhos.



Montero L. G. Antologia poética; – Madrid: Castália Editorial, primeira impressão, 2002.





segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

ABGAR RENAULT: POEMAS





Sub specie aeternitatis



Vi-te, e vi a expressõ essencial

da forma, da graça e da luz.

Vi-te, e vi a trémula fragilidade do efêmero

vestida das roupagens do eterno.



Vi-te, e sobre mim baixou, vindo do teu céu,

uma fulguração de raio, que feriu de vertigem

o meu destino de distâncias e negações

e deixou meus olhos sem pálpebras

para outro sol que não seja o teu esplendor.



Vi-te, e abri meu ser emudecido

para elevar à tua altura este canto de exaltação.

Mas a minha voz morreu em silenciosas névoas

e o meu coração, arquejante, parou de pulsar,

porque te vi e, vendo-te, vi em ti

o sem-limite das cousas que só habitam os sonhos sonhados

depois do tempo e além da vida.



Encantamento



Ante o deslumbramento do teu vulto

sou ferido de atônita surpresa

e vejo que uma auréola de beleza

dissolve em lua a treva em que me oculto.



Estás em cada reza do meu culto,

sonhas na minha lânguida tristeza,

e, disperso por toda a natureza,

paira o deslumbramento do teu vulto.



É tua vida a minha própria vida,

e trago em mim tua alma adormecida...

Mas, num mistério surdo que me assombra,



Tu és, às minhas mãos, fluida, fugace,

como um sonho que nunca se sonhasse

ou como a sombra vã de uma outra sombra...



Soneto do impossível





Não ouvirás nem luz, nem sombra inquieta

das sílabas que beijam tuas asas,

nem a curva em que morre a ardente seta,

nem tanta eternidade em horas rasas.



Não medirás a bêbeda corola

que abriste no final do meu sorriso,

nem tocarás o mel que canta e rola

na insônia sem estradas onde piso.



Não saberás o céu construído a fogo,

que tua jovem chave cerra e empana,

nem os braços de espuma em que me afogo.



Não verão os teus olhos quotidiana

a minha morte de homem embebida

no flanco de ouro e luar da tua vida.




AFFONSO ROMANO SANT'ANNA: POEMA




CATANDO OS CACOS DO CAOS


Catar os cacos do caos

como quem cata no deserto

o cacto

............ - como se fosse flor.



Catar os restos e ossos

da utopia

............ como de porta em porta

o lixeiro apanha

detritos da festa fria

e pobre no crepúsculo

se aquece na fogueira erguida

com os destroços do dia.



Catar a verdade contida

em cada concha de mão,

como o mendigo cata as pulgas

no pêlo

............ - do dia cão.



Recortar o sentido

como o alfaiate-artista,

costurá-lo pelo avesso

com a inconsútil emenda

à vista.



Como o arqueólogo

reunir os fragmentos,

como se ao vento

se pudessem pedir as flores

despetaladas no tempo.



Catar os cacos de Dionisio

e Baco, no mosaico antigo

e no copo seco erguido

beber o vinho

ou sangue vertido.



Catar os cacos de Orfeu partido

pela paixão das bacantes

e com Prometeu refazer

o fígado

............ - como era antes.



Catar palavras cortantes

no rio do escuro instante

e descobrir nessas pedras

o brilho do diamante.



É um quebra-cabeça? ............ Então

de cabeça quebrada vamos

sobre a parede do nada

deixar gravada a emoção



......Cacos de mim

......Cacos do não

......Cacos do sim

......Cacos do antes

......Cacos do fim



Não é dentro

............ nem fora

embora seja dentro e fora

..... no nunca e a toda hora

que violento

.....o sentido nos deflora.



Catar os cacos

do presente e outrora

e enfrentar a noite

com o vitral da aurora


IACYR ANDERSON FREITAS: POEMA






UM CICLONE ATRAVESSA AGORA A ETERNIDADE



já não me basta atender

aos que me convocaram



há outras impermanências

e coisas que agiram no espaço

em que o amor

se dessedenta



flora de exício? não:

percute em mim

à sombra de outros limbos

em ilhas às quais

me foi forçado aportar

para me reconhecer



os céus não vão por esses hortos

resiste aqui

a derradeira essência

de estuários que se procuram

nomes jogados sobre os flancos

e peixes

peixes como setas

no ar sedento



já não me basta percorrer

as idades que me atravessaram

ao longe

vejo gastas as cordas

liames secos

e borrascas

esquecidas nas ampolas



o ocaso se acende

desenha navios

velames potros

na penumbra anterior

desses pistilos



para chamar as águas

por seus nomes

para nomear o calor

de cada segundo

conheci

o círculo terceiro desta ilha



todo o ouro perdeu-se

mas resiste o lamento

de outros reinos

o acúmulo de meses

e flores que eu não sei

de tão sentidas



um ciclone atravessa agora

a eternidade

traz consigo

postais partidos

e perigos

presos

nos arreios



para testemunhar o encalhe deste dia

reuni-me

em exílio

aos missais que

por vós

dedilho



Do livro Quaradouro




TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA: POEMA




Lira III




Tu não verás, Marília, cem cativos

tirarem o cascalho e a rica terra,

ou dos cercos dos rios caudalosos,

ou da minada serra.



Não verás separar ao hábil negro

do pesado esmeril a grossa areia,

e já brilharem os granetes de oiro

no fundo da bateia.



Não verás derrubar os virgens matos,

queimar as capoeiras inda novas,

servir de adubo à terra a fértil cinza,

lançar os grãos nas covas.



Não verás enrolar negros pacotes

das secas folhas do cheiroso fumo;

nem espremer entre as dentadas rodas

da doce cana o sumo.



Verás em cima da espaçosa mesa

altos volumes de enredados feitos;

ver-me-ás folhear os grandes livros,

e decidir os pleitos.



Enquanto revolver os meus consultos,

tu me farás gostosa companhia,

lendo os fastos da sábia, mestra História,

e os cantos da poesia.



Lerás em alta voz, a imagem bela;

eu, vendo que lhe dás o justo apreço,

gostoso tornarei a ler de novo

o cansado processo.



Se encontrares louvada uma beleza,

Marília, não lhe invejes a ventura,

que tens quem leve à mais remota idade

a tua formosura.



MANUEL INÁCIO DA SILVA ALVARENGA: POEMA





O Beija-flor




Deixo, ó Glaura, a triste lida

Submergida em doce calma;

E a minha alma ao bem se entrega,

Que lhe nega o teu rigor.



Neste bosque alegre e rindo

Sou amante afortunado,

E desejo ser mudado

No mais lindo beija-flor.



Todo o corpo num instante

Se atenua, exala e perde;

É já de oiro, prata e verde

A brilhante e nova cor.



Deixo, ó Glaura, a triste lida

Submergi da em doce calma;

E a minha alma ao bem se entrega,

Que lhe nega o teu rigor.



Vejo as penas e a figura,

Provo as asas, dando giros;

Acompanham-me os suspiros,

E a ternura do pastor.



E num vôo feliz ave

Chego intrépido até onde

Riso e pérolas esconde

O suave e puro amor.



Deixo, ó Glaura, a triste lida

Submergida em doce calma;

E a minha alma ao bem se entrega,

Que lhe nega a teu rigor.



Toco o néctar precioso,

Que a mortais não se permite;

É o insulto sem limite,

Mas ditoso o meu ardor;



Já me chamas atrevido,

Já me prendes no regaço;

Não me assusta o terno laço

É fingido o meu temor.



Deixo, ó Glaura, a triste lida

Submergida em doce calma;

E a minha alma ao bem se entrega,

Que lhe nega o teu rigor.



Se disfarças os meus erros,

E me soltas por piedade,

Não estimo a liberdade,

Busco os ferros por favor.



Não me julgues inocente,

Nem abrandes meu castigo,

Que sou bárbaro inimigo,

Insolente e roubador.



Deixo, ó Glaura, a triste lida

Submergida em doce calma;

E a minha alma ao bem se entrega,

Que lhe nega o teu rigor.




domingo, 1 de janeiro de 2012

CLÁUDIO MANOEL DA COSTA: POEMA





SONETO


II

Leia a posteridade, ó pátrio Rio,

Em meus versos teu nome celebrado;

Por que vejas uma hora despertado

O sono vil do esquecimento frio:



Não vês nas tuas margens o sombrio,

Fresco assento de um álamo copado;

Não vês ninfa cantar, pastar o gado

Na tarde clara do calmoso estio.



Turvo banhando as pálidas areias

Nas porções do riquíssimo tesouro

O vasto campo da ambição recreias.



Que de seus raios o planeta louro

Enriquecendo o influxo em tuas veias,

Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.


CLÁUDIO MANOEL DA COSTA: POEMA





Temei, Penhas...




Destes penhascos fez a natureza

O berço em que nasci: oh! quem cuidara

Que entre penhas tão duras se criara

Uma alma terna, um peito sem dureza!



Amor, que vence os tigres, por empresa

Tomou logo render-me; ele declara

Contra meu coração guerra tão rara

Que não me foi bastante a fortaleza.



Por mais que eu mesmo conhecesse o dano

A que dava ocasião minha brandura,

Nunca pude fugir ao cego engano;



Vós que ostentais a condição mais dura,

Temei, penhas, temei: que Amor tirano

Onde há mais resistência mais se apura.