domingo, 27 de março de 2011

EPIGRAMA




EPIGRAMA (6)


Amas a verdade?

Aceita o próximo e a solidão.

Jazigo maior não há em vão.

EPIGRAMA

(Murais de Pompéia)




EPIGRAMA (5)


Sê o primeiro no amor, serás o último na cama.

Cultiva apenas sentimentos, terás somente uma dama.


sábado, 26 de março de 2011

EPIGRAMA

(Francis Bacon)




EPIGRAMA (4)

Se podes amar, faça-se amado.

Opulência e indigência

ensejam análogos prados.

HELENA FIGUEIREDO: POEMAS


REGRESSOS

Se me contassem que se podia trasladar um corpo ido,
e te nasciam de novo raízes no meu peito,
iria desprezar o impostor.
Mas como posso desprezar a noite onde me deito,
este ninho que acolhe os meus segredos,
que me traz teus braços de deleite,
e te aconchega junto a mim.
Seria mentira dizer que não te quero mais,
que vou voar agarrada ao sol,
para que não me possuas, na minha cama nua,
agora, que sei onde te encontro sempre,
espero que os olhos se fechem de repente,
para no sonho, poder enfim, ser tua.


EVIDÊNCIAS

Hoje, que nada nos chama,
as horas
pendem vagarosas no espelho,
e o corpo
espanta-se,
nos fatos desabotoados,
na curvatura das costas,
naquela ruga que apareceu num dia mau.
Crescemos numa aparência sem nexo,
e atordoados,
procuramos as flores,
a confusão das cadeiras,
os brinquedos que viviam no corredor.
Precisa de óleo a dobradiça do armário,
e os joelhos,
gritam a idade
esquecida de virar no calendário.

AFORISMO


(Paul Delvaux)

220

"Como relíquias de um santuário saqueado assim são as verdades no amor."

JOAQUIM BRASIL FONTES: DO AMOR

(Paul Delvaux)

Na tragédia, na lírica, nos contos ligeiros: no contexto que hoje chamaríamos de literário, o amor, longe de ser um valor positivo, cai sobre homens e deuses como castigo, maldição, doença. É também como patologia que ele faz sua entrada nos discursos filosóficos e moralizantes: Lucrécio mostra “que a saúde mental consiste em procurar sabiamente os prazeres de Vênus à esquerda ou à direita”. A obsessão sexual por um objeto único é uma forma de loucura ou furor, palavra com que os latinos indicavam o amor imoderado: irracional, doentio, sem justa medida. A ordenação do mundo clássico exige uma higiene regulando o uso dos corpos nos aphrodisia, isto é, atos, gestos, contatos que proporcionam certa forma de prazer. Figura exemplar dos venerea possíveis e permitidos é a Leocônoe da ode horaciana, a quem o poeta aconselha: “Enquanto conversamos, foge o tempo, invejoso. Colhe o dia!”.


Eros, tecelão de mitos. Ed. Iluminuras.

terça-feira, 22 de março de 2011

ENTREVISTA COM O POETA SILVÉRIO DUQUE


1) – Como ocorreu seu contato inicial com a poesia?

Eu comecei, muito cedo, a ler poesia; escrever, no entanto, foi algo que veio depois, bem depois e eu, sinceramente, não conseguiria dizer, com certeza, quando ou como foi verdadeiramente. Sei que apareceu, sei que Fernando Pessoa, Drummmond, Camões, Shakespeare, Dante, e, logo depois, Eurico Alves Boaventura, Manuel Bandeira, João Cabral, Rilke, Tolentino, começaram a fazer parte de minha vida... mas, hoje, prefiro acreditar, o me limitar a responder, na seguinte idéia: Poeta nascitur, orator fit, como diria Sêneca.


2) – Como é seu procedimento ao escrever um poema?

A idéia me vem. Aí, eu a capturo, “deixo rolar”, como dizem os mais jovens. Depois, ponho “no complicador”, como diria o João Cabral. Tenho poemas feitos de uma só vez, cujos retoques foram mínimos e outros que levaram horas, dias, meses e até anos. Em meu próximo livro, Ciranda de Sombras, a sair pela É Realizações, há um poema que construir ao longo de oito anos...

Retoco aqui, refaço ali, reproduzo e experimento várias combinações sonoras. Sou músico, componho um poema como quem combina notas, melodias, harmonias, timbres... Este é o caminho de quem quer algo bem feito, é o caminho percorrido pelos grandes, é o caminho que quero e devo seguir. Quem faz o contrário é um idiota preso em sua própria vaidade de inepto.

3) – O que é poesia para Silvério Duque?

É uma afirmação diante da vida e de suas limitações. A poesia é uma das poucas coisas que eu sei valer, verdadeiramente, alguma coisa. Com ela, a vida é maior e já a não sei olhar (ou para mim mesmo) sem olhar para ela, pois nos tornarmos uma coisa só, o mesmo propósito, a mesma vontade de completude. Ela me dá a certeza de que é possível criar, realizar... E realizar é afirmar a vida, vencer a morte; como eu mesmo escrevi, para um amigo poeta que morria de câncer:

É preciso criar para sentir;
nada somos se nada construímos,
pois se nada inventamos, nada existe...
Somos a nossa ação por sobre o tempo.

No dia em que tecemos tudo vive,
realizar é escapar da morte... mas,
não durarei apenas entre os outros,
pois dou aos versos usos e clarezas.

De tanta falta e busca me revejo,
de tanto amor e anseio, me reinvento,
nessas rotas e fugas me refaço.

Necessário é criar e a vida é pouca,
no dia em que eu me faço estou e existo.
Neste poema há todos os meus passos.

4) – Como você vê o atual panorama da poesia brasileira contemporânea?

Eis, aí, uma pergunta difícil...

A poesia, em nosso País, sempre foi algo muito forte, ligada demasiadamente à construção de nossa nação, à nossa idéia de brasileiros, à identidade brasileira. O problema é que, de uns tempos para cá, alguns critérios muito básicos vêm mudando radical e erroneamente. Exceto por uma duas dúzias de esmerados perdidos por nosso vasto território, a cultura, que, no Brasil, um dia, se chamou de erudita, é quase uma alucinação.

Um dos grandes problemas de nossa atual sociedade foi desaprender o sentido, tanto teórico quanto prático, da palavra “critério”, ou mesmo “juízo” e “discernimento”. De pessoas que acham, por exemplo, que a Ivete Sangalo é a maior cantora do Brasil porque cantou no Madison Square Garden ou que o Romero Britto, que, claro, possui lá o seu valor, é um grande pintor porque vendeu quadros para a Madona e o Arnold Swarchenegger...“me poupe”! E a poesia, principalmente a contemporânea, acabou sofrendo muito com isso, também. Assim, se tu me perguntas sobre a nossa poesia e se ela vai bem, é claro que vai, sempre foi maravilhosa. A questão é que a poesia, mesmo se apresentando como uma forma de arte menos comercial e, muitas vezes, “sisuda”, não se livrou deste problema que no Brasil é grave, crônico e contagioso, por isso é preciso, infelizmente, dividir a poesia em dois extremos bem distintos: de um lado, aquela que ocupa a maioria das revistas, jornais e programas ditos especializados que, em sua maioria serve apenas para maquiar a total ignorância e a falta de apreciação mais acurada, aliada às trocas de favores, ao cooperativismo porco, à industria da promoção, dos diplomas, das orelhinhas de livros; do outro, aquela poesia distante da grande maioria destes veículos, feitas por pessoas que sabem que a poesia é a mais perfeita das redações, que ela não se nivela por baixo e que deveria constar nos livros de literatura e em todo material didático que chega às mãos de nossos alunos, porém, o que acontece é que aquilo que há de pior, ou, no melhor dos casos, de mais simples, óbvio e, digamos, de fácil digestão, à maneira da axé music e do hip hop, é o que se acaba estudando e aprendendo como a única poesia existente no Brasil, e isso é uma inverdade cruel e sínica, mas, ouça o que te digo, a história, no fim, excluirá os covardes, os apedeutas, os sem talento, os sem critério, os sem noção...

Mas, ainda contamos com grandes nomes, como Bruno Tolentino, Alberto da Cunha Melo, Orides Fontela, Hilda Hilzt, Ildásio Tavares, por exemplo, que, mesmo mortos, ainda que a pouquíssimo tempo, são nossos contemporâneos, incluindo mestres da velha guarda como Ferreira Gullar, Ariano Sussuna, Reynaldo Valinho Alvarez, Adélia Prado, Mirian Fraga, Antônio Brasileiro e Conceição Paranhos que ainda estão vivos e nos ensinando cada vez mais. Estes são nossos contemporâneos, claro.

Agora, se tu me perguntas, mais especificamente, de nomes e poetas mais novos, em todos os sentidos, eu muito me contento em ler os trabalhos de Rodrigo Petrônio, autor de Venho de um país selvagem, que, inclusive, ganhou prêmio, aqui, na Bahia; Érico Nogueira, Marco Catalão, Jorge Elias Neto, ou de baianos – por que acontece que eu também sou baiano –, que são responsáveis por manter uma tradição de qualidade e beleza que provem desde Gregório de Matos, passando por Castro Alves e outros mais, como Bernardo Linhares, que nos apresenta uma poesia madura e admirável, onde forma fixa, aliada à livre cadência de ritmos, compõe uma das obras mais singulares de nossos últimos tempos por se tratar, principalmente, de um livro contemplativo, que nos apresenta uma postura positiva da vida e de toda a beleza que ela nos oferta dia após dia, e, em um caso que vai um pouco além do ofício de poeta; Gustavo Felicíssimo, que é o paulista mais baiano que conheço e um dos poetas mais disciplinados e talentosos de minha geração, por assim dizer, responsável por reunir e divulgar, em seu livro Diálogos (Ilhéus/Itabuna: Via Litterarum/Editus, 2009.), uma dos maiores grupos de poetas que o Brasil já possuiu, todos baianos, da região Grapiúna, onde, sem dúvida nenhuma, se produz, atualmente, a melhor poesia da Bahia e uma das melhores do País.

Quem se aventurar nas páginas de Diálogos, encontrará a síntese perfeita entre imagem e palavra na econômica, porém dialética, poesia de Edson Cruz; o verso sincero e livre de Heitor Brasileiro Filho; a delicada angústia de Noélia Estrela; os formais e coloquiais sonetos de Piligra; a enigmática literatura de George Pellegrini; o erotismo pujante e lírico de Rita Santana; o verso livre e apaixonado de Fabrício Brandão; o deslumbramento reflexivo de Daniela Galdino; os haicais (e falando em haicais já se diz tudo) de Mither Amorim; o esmiuçar emotivo de Geraldo Lavigne. Além do mais, o leitor constatará uma coisa óbvia: o trabalho sério e impressionante do pesquisador e organizador Gustavo Felicíssimo, que, entre critérios estéticos e políticos, constrói uma obra de referência, onde novas vozes se misturam, em igual índole, a nomes referencias como Sosígenes Costa, Adelmo Oliveira e Cyro de Mattos e para onde não encontramos sinais de nenhum “verbalista” que, como bem acentuou, certa vez, o filósofo Olavo de Carvalho, são os ditos "poetas que saltam direto do estímulo verbal à reação emotiva, sem passar pelo trabalho de imaginação e muito menos pela triagem crítica das representações imaginativas e cuja sua tendência é buscar a comoção ante os simples jogos vocabulares que, bem examinados, não significam absolutamente nada e nem poderão suscitar emoção nenhuma a não ser no sucesso do movimento Concretista que se deveu a propagação do verbalismo no lugar do verdadeiro poeta..."

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E se tu (e o leitor) ainda me permitir mais um exemplo – eu disse que esta pergunta era um problema – ainda temos o caso de poeta Patrice de Moraes, que, por ainda não ter seu trabalho muito divulgado e nem lançado por uma editora, merece um tratamento um pouco especial.

Falar de Patrice de Moraes é falar de um homem de extraordinário talento, cuja produção poética, segundo o dizer de Jessé de Almeida Primo, tranqüiliza a toda crítica “por não deixá-la em dúvida quanto à sua qualidade”, não restando objeções ao seu domínio de um ofício de eleitos: a Poesia. Poesia sem medos: sem medo de mostrar suas influências, de apontar para as fontes de onde se embebera, seja uma poetisa grega, morta a mais de vinte e seis séculos ou um mineiro introspectivo, cuja derradeira herança foi um livro de versos eróticos; seja um poeta português que foi tantos ou um paraibano que não foi menos que único. Poesia sem medo de mostrar sem disfarces e subterfúgios ou de encontrar aquela liberdade presente nas formas fixas que só um grande poeta sabe dar e reconhecer. Sem medo de não se mostrar pessoal e sincera, sem perder a boa e velha veia fingidora. Sem medo de ser poesia pura e depurada. Poesia como poesia deve ser. E para ser possível obter algo assim faz-se necessário munir-se de três grandes e indispensáveis requisitos: o talento a disciplina e o amor ao que faz que, a tudo, nos obriga.

Quando me refiro à poesia de Patrice de Moraes, refiro-me a uma poesia que sempre se quer cinética, que pretende romper os limites da impressão simplória e alçar à consubstanciação da mais pura e didática alegoria, ou seja, uma poesia que substitui o abstrato pelo aparentemente concreto, ou, como melhor definiu Coleridge, citado por César Leal em seu Os cavaleiros de Júpiter, uma “transposição de noções abstratas para uma linguagem de cores”. Assim, cada poema de Patrice faz-se de imagens intencificadoras, dentro de um sistema que permite muito bem a isso; uma imagem representando um conceito ao qual se pretende, ou, simplesmente, comunicar, por meio de imagens puras e gradativas, o despertar dos sentidos, onde certas questões, como a do erotismo, são bem menos um assunto do que uma maneira de metaforizar, como nos dirá Jessé de Almeida Primo: “nesse sentido, sua poesia é tão erótica quanto toda poesia de qualidade deve ser, pouco importando seu assunto”.

Mas é, evidentemente, o próprio Patrice de Moraes, quem nos dá o melhor exemplo:

Se tens em ti a alma seduzida
a contemplar o Belo onipresente,
pensa que esse recurso reverente
levar-te-á à terra prometida.

Não àquela da Bíblia conhecida.
Mas outra situada num ambiente
onde sentir é fonte permanente
de ilustrações poéticas da vida.

Falo-te com profética certeza
porque assim que a existência foi-me empresa
às bases da contemplação do Belo

meu coração coitado preparou-se
a receber o AMOR como se fosse
o prego feito à imagem do martelo.



5) – A inovação em termos de poesia é sempre necessária? Existe uma tradição perene em regiões especificas do nosso país, como o Grande Nordeste?

Como afirmei, no início de nossa conversa, A poesia, aqui, no Brasil, sempre foi algo muito forte, ligada demasiadamente à construção de nossa nação, à nossa idéia de brasileiros, à identidade brasileira. E é claro que há uma tradição histórica ligada aos grandes centros culturais: no Nordeste (Bahia, Pernambuco e Maranhão), principalmente, por causa dos primeiros dois séculos de nossa formação, em Minas Gerais, graças aos Inconfidentes e no Rio de Janeiro, por tudo que veio dos primeiros anos do século XIX para cá. Eis os nossos grandes centros, lugares onde há uma tradição de poesia, onde a própria poesia é uma tradição. Todavia, mais do que tradição, ou inovação, necessitamos de boa poesia, de poesia de qualidade e é aí que começa um problema que já discutimos...


6) – Comente sobre a influência bíblica presente nos poemas de seu livro A pele de Esaú.

Eu penso da seguinte forma: como não ter esta influência? Ela está em nós por mais que não queiramos aceitar, pois é na Bíblia que está o nosso Mito Fundador. Leia o artigo: Do mito à ideologia, de Olavo de Carvalho, no Jornal da manhã do dia 21 de março de 2001. Um autêntico Mito Fundador é uma verdade inicial compactada que, no decorrer da História, vai desdobrando o seu sentido e florescendo sob a forma de ciência, de leis, de valores, de civilização, não sendo ele mesmo um produto da cultura por ser ele mesmo a semente de uma cultura possível. Basicamente, prossegue o filósofo, um Mito fundador constitui-se, em geral, de uma narrativa simbólica de fatos que efetivamente os sucederam que de tão essenciais e significativos que acabam por transferir parte de seu padrão de significado para tudo o que venha a acontecer em seguida numa determinada área civilizacional. A Bíblia é o Mito Fundador da civilização ocidental. E de que maneira este Mito Fundador se nos apresenta, e nos é repassado ao longo da História? Através da Literatura, primordialmente... Oral, depois escrita, xilogravada, depois pintada, melodiada por Bach etc. e tal... A arte é uma das muitas punções de um Mito Fundador. Quando Northrop Frye afirma ser, a Literatura Ocidental, uma variação dos enredos bíblicos, ele não só demonstra a existência e a importância do Mito Fundador como nos dá um belo exemplo do poder que a Poesia e a Arte exercem sobre nós ao longo de milênios. Até mesmo o Marxismo (que para mim é uma coisa abjeta) no que ele, supostamente, tem de melhor, é um mero decalque do Cristianismo.

No contexto mais específico d’A pele de Esaú, procurei, na figura de um Esaú destituído de seu destino, elaborar uma associação de sentimentos e pensamentos, buscando a verticalidade de múltiplos personagens que se querem fundir em um só. Afinal, o drama de Esaú é de todo ser humano, criatura destituída de seu verdadeiro lugar, como aquele Albatroz de Baudelaire,...“exilé sur le sol au milieu des huées, ses ailes de géant l'empêchent de marcher”, que um dia se apartou da presença de Deus. Um drama que, aliás, Sto. Agostinho, n’As Confissões, resumiu muito bem: “Fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat inTte."


7) – Em tempos onde muitos “poetas” vanguardistas repudiam toda referência à Tradição Poética, você escreve uma poesia centra na forma fixa do soneto, ou seja, uma forma clássica. Comente sobre esse aspecto de sua poesia.

A forma, como já tive a oportunidade de dizer outrora, sempre pareceu, aos olhos ineptos, como um grande problema para quem nutria alguma pretensão poética; durante a pantomima estilística promovida pelo modernismo paulista de 1922, a forma figurará com um problema a ser resolvido, ou melhor, um cancro a ser extirpado, e não uma condição natural do fazer poético. Ambas as concepções, no entanto, são impressões simplórias e vulgares de quem só gosta de acreditar em besteira; neste caso, na idéia de que a forma é uma mera disposição de versos e rimas, ao bem da escolha de cada poeta, principalmente, àqueles que demonstram a mais completa inabilidade para com ela. Digo isso por pura experiência, pois, de todos os poetas que convivo e convivi – dos que conheço pessoalmente ou dos que só sei de ouvir falar e ler –, somente os que não dominam a forma reclamam dela; análogos a muitos artistas plásticos de lorota, que escondem sua escassez de talento através de um dito viés abstracionista. Há muitos que se dizem poetas, desprezando o soneto e as demais formas fixas, com a velha desculpa de que a forma é uma “aprisionadora” da inspiração e, conseqüentemente, do poema... entre outros despautérios.

Mas a forma nada mais é do que a elaboração interior do poema e é a idéia nele contida que a comporá, não o contrário. Um decassílabo, por exemplo, deve nascer decassílabo, quaisquer emendas de rimas ou sílabas métricas resultariam numa deformidade a comprometer, mais do que a qualquer outra coisa, o conteúdo da poesia. Forma é assimilação de idéia; compor diretamente nela é o melhor exemplo que alguém possa ter da incorporação desta idéia ao seu resultado final, enquanto arte. Todavia, é sempre bom lembrar que, quando digo que não pode haver emendas, ou apoios à composição de um poema, não me refiro aqui à depuração, que é um ato indispensável à criação poética, e que nada mais é do que o exercício e, conseqüentemente, a adequação de melhores recursos a uma forma já existente, pois ninguém sai de um soneto alexandrino para uma retranca, ou de um octossílabo pronto para um possível decassílabo sáfico; apenas se lapida, se retoca, fazendo com que um verso defeituoso, ou inexpressivo, como bem considerou Manuel Bandeira, em seu Itinerário de Passargada, carregue-se de poesia “pelo efeito encantatório de uma ou de algumas palavras”, exprimindo, no entanto, a mesma idéia e o mesmo sentimento que as substituídas, mas “lhes dando superioridade” naquilo que é a matéria mesma da poesia: a palavra.

Essas coisas são tão óbvias e, de certo modo, tão simplórias, que é difícil de acreditar que alguém as ignore com tanta veemência, mas não faltam exemplos de que tamanha asneira prolifera-se, por aí, como baratas no esgoto. Não faltam exemplos de idiotas que não acreditam na forma como a patente e espontânea conseqüência da idéia de um poema que – como afirmou o crítico Jessé de Almeida Primo – carrega em si o caráter mimético que, de tal sorte, a forma vem a existir para calcular, bem como para dizer algo do texto, que o texto não diz, por mais que isto, antagonicamente, só seja possível, através do texto, por meio da “prosódia e do ritmo” que, para o autor de A natureza da Poesia, são sempre encenação de alguma coisa.

Acreditar que um soneto são simples catorze versos e não o resultado natural da concepção poética é, paradoxalmente, quase que dar crédito ao piano, pela bela interpretação de um concerto, do que ao pianista que, virtuosamente o dedilha, visto que, ao desprezar o resultado acabado, ele teria mais credibilidade em sua forma do que em sua essência. Vejamos então, leitor amigo, outro exemplo simples, também utilizado pelo Jessé Primo.

Na cinza desta tarde me comovo,levado por lembranças tão pequenasque me volta o desejo de partida quando já estou bem próximo à chegadae me sobram razões de ter ficadosem sonhar o momento de partirnem cultivar tenções de continuar.Procedo como um louco que se perdenas voltas renovadas do caminhoe sem saber repisa a mesma trilha.Repasso o longo espaço percorridoe me faço perguntas sem resposta.Onde terei deixado o que perdiou que terei deixado ao me perder.
Os catorze versos estão aí, embora se sinta a falta dos já citados dois quartetos e dois tercetos ou, neste caso mais específico, os três quartetos e um dístico, pois se trata de um soneto inglês. Por que...? Para Jessé de Almeida Primo, há, neste belíssimo poema de Reynaldo Valinho Alvarez, um ritmo muito específico que predomina nos dose versos, levando-se em questão uma leve variação, que, por sua vez, confirmam e credibilizam o ritmo original, como na retomada de fôlego a partir do oitavo verso, no qual, ainda segundo Jessé, “tudo começa outra vez”, até a mudança mais acentuada exercida pela “uniformidade prosádica dos dois versos finais”; Jessé Primo, então, conclui que, “se a rima é igualdade de som”, como também afirmara o grande Manuel Bandeira, “neste soneto mostra ser também uma igualdade no ritmo, ou seja, a forma fixa é, antes de tudo, definida pela melopéia, de modo que, o agrupamento de versos e as rimas terminam por ser um detalhe”. O resultado disso, como vemos, é um soneto, e não catorze versos.

E por falar em soneto... Se tu perguntares a quaisquer alunos de nossas melhores escolas, ou, até mesmo, aos neófitos do Materialismo Histórico, os quais compõem a grande maioria de nossos universitários, não só nos cursos de Letras, mas, nas Universidades brasileiras, como um todo, sobre o que seria um soneto, ouvir-se-ia, entre ludibriações de todos os tipos (recurso muito comum àqueles que não gostam de admitir suas ignorâncias; talvez, a coisa mais honrosa que a grande maioria destas pessoas poderia fazer em vida) e retumbantes, porém dignos, “não sei!”, a resposta mais comum seria: “é um poema de quatorze versos, dividido em dois quartetos e dois tercetos”. Afirmação esta muito comum de se ouvir com relação àquilo que se perguntou (pois para a grande maioria dos alunos de Literatura, seja lá qual for o seu grau de instrução, extraviados do mais simples e decente rumo intelectual, esta será toda consideração, a respeito deste assunto, que eles terão em toda sua vida acadêmica), mas que, de longe, açambarcaria esta forma que, dentre as “castas” poéticas em que se diversifica o gênero lírico, é a que exige, de seu criador, o maior nível de intelectualidade, de concretude e de pensamento lógico-reflexivo, ou seja, a priori, o soneto precisaria ser rimado, metrificado e apresentar uma estrutura dissertativa em seu discurso, exigindo de seu autor grande conhecimento daquilo que faz e do que fala através dele (além do esqueleto estrófico tão comumente citado), que, em nada, ajudaria a compreender a grandeza e a complexidade desta forma, a qual se encontra no cerne de toda a Poesia Ocidental há séculos, e, ainda assim, é o mais sofisticado modelo poético existente, mostrando-nos, só por motivo de exemplo, que não foi à toa que parnasianos e simbolistas – tão diferentes entre si – preferiam-no, incondicionalmente.

Desde os exemplos mais clássicos, como os de Petrarca, Camões e Shakespeare, aos melhores mestres deste gênero em nossa literatura colonial e pré-moderna, como Gregório de Matos, Cláudio Manuel da Costa, Machado de Assis, Raimundo Correa, Cruz e Sousa e Olavo Bilac, o soneto tem se mostrado o fim a que se dirigirem os versos de muitos dos maiores poetas do mundo há mais de meio milênio. Nem mesmo o advento do Modernismo – e, quando falo de Modernismo, não me refiro, aqui, à pantomima paulista de 1922, nem à Disney World canibalística que a ela se seguiu, antes, refiro-me àquele Modernismo onde o clássico e o novo convergiam sem nenhum tipo de inconveniência ideológica ou de extravagância lírica, como é o caso do Modernismo de Euclides da Cunha, Lima Barreto e Augusto dos Anjos, logo retomado pelas gerações de 30 e 45, por exemplo – destruiu a importância e a tradição às quais o soneto se vale até os dias de hoje; pelo contrário, o Modernismo cultivou um soneto dotado de rigor e beleza como jamais se viu.

Segundo César Leal, em Os Cavaleiros de Júpiter, “o elemento protéico do soneto é o pensamento reflexivo”, mesmo quando este “alcança uma ordenação mágica como é freqüente em Jorge de Lima”. É, no soneto, que conhecimento, ciência e instrução geral se fundem com legitimidade, por isso mesmo, no Modernismo, apesar do descrédito e difamação de muitos, o soneto se aperfeiçoou, tornado-se, inclusive, “independente e diverso em relação aos modelos clássicos” – afirma César Leal –, apresentando – ainda de acordo com o poeta e ensaísta pernambucano – “traços estilísticos inconfundíveis”, como são os casos de Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Vinícius de Moraes, Bruno Tolentino, Sosígenes Costa, Mário Quintana, Emílio Moura, Ariano Suassuna, Dante Milano, Ildásio Tavares... O soneto moderno – como todo bom poema de qualquer época – deve estar pleno de sentido, de significados, e não ser um mero jogo de idéias sobrepostas ao acaso; deve aparecer e soar ao seu leitor dentro de uma “imaginação auditiva” (lá vem o César Leal, de novo), tão comum em Milton, segundo T. S, Eliot, como no próprio Eliot, mas também em Castro Alves e até mesmo em Ascenso Ferreira, e, por recortar uma realidade instigante, por ter uma penetração psicológica muito intensa, por proporcionar uma fácil compreensão de tudo e de si mesmo, é uma obra da razão recortada pelos malabarismos lingüísticos e dos signos comuns, à maneira da inovação formal proposta por mestres como Jorge de Lima, e mantendo aquela tradição oral e simbólica comum que Vinícius de Moraes absorveu de Camões, por exemplo.

Além do mais, todo poema é formal quando se quer fazer algo bem feito, pois o bom poeta, que é também música, não pode admitir a desarmonia, o barulho frívolo, o ritmo descompassado. Meu livro A pele de Esaú tem metade de seus poemas em forma de soneto e a outra metade em forma livre, por assim dizer, o que ele não possui, é a deselegância instintiva dos que não querem aprender nem melhorar; trabalhei duramente para que ele tivesse, como afirmei a pouco, a plenitude de sentido, de significados, e não ser um mero jogo de idéias sobrepostas ao acaso, mas aparecer e soar ao seu leitor dentro de uma “imaginação auditiva”. Isso eu sei que se faz presente tanto em poemas como este:

E sempre, em meu olhar, o mesmo rosto,
a mesma noite, o mesmo labirinto.
O anjo que eu vi cair, já recomposto,
evola-se na luz – Eu não o pressinto...?

Avistei-o, através deste sol-posto,
sob o livor da morte e meus instintos,
ardente e triste sobre os céus de agosto
como as coisas que vi e agora sinto,

pois maior é o Mistério à minha frente.
( Nesse vento indo e vindo pelas portas,
eu penso em Deus e nada está ausente... )

– Somos memória e a morte a todos corta,
meu irmão Esaú precito e crente,
mas só a visão de Deus é o que te importa.


Como neste, também:

Tudo é tão terrível, Senhor
estes silêncios colhendo as orações e os frutos
a temeridade presente na Beleza
a navalha despertando a carne
o coração que bate
o pulso aberto
este morrer de tantas coisas
a indagação da Eternidade
a dúvida
o chão
a chuva
o barro paciente
o vaso que em todo barro existe
o oleiro
o instante fugaz como
todo instante
o instante fugaz como tudo
a noite
as estrelas
o dia sem nuvens
o corpo
o outro corpo
o espaço
a medida
o campo
as reses
a vida a brotar da morte de toda semente
o mover de tudo
o musgo
os muros
ainda que eu veja tudo
e esteja em tudo
toda mentira me é pouca
o passado
o porvir
a dor que trago agora
o peito
o braço
o olho
o sexo
os pés
o mar
o céu
( mas entre o mar e o céu o abraço insano )
o mar
o céu
( dois infinitos que no Azul se inflamam )
o mar
e o céu
( este mútuo espelhar entre os eternos )
as estrelas no espaço
tristes
o afastamento
o encontro
o martírio
o amor
a renúncia
o Minotauro
a falsa fé de Minos
as asas de Ícaro
Pasifae
o Touro
o Labirinto
o muito perder-se de Dédalos
a Esfinge
o enigma
o precipício
( esta mulher, Senhor
meu naufragar em seu corpo
o seu cheiro
a sua carne
o seu delírio
o suor
o gozo
as entranhas
toda ela e tudo... )



8) – O que você diria como forma de conselho para aqueles que estão se iniciando na prática da poesia?

Não sou a melhor pessoa para dar este tipo de conselho, pois tenho apenas 32 anos, dois livros publicados e um a caminho, sou tão aspirante quanto muitos que ensaiam seus primeiros versos; mas, para não deixar a pergunta sem resposta, vou falar dos conselhos que eu mesmo me dou. Ler muito, mas, principalmente, ler os grandes poetas. Muitos poetas com certo talento tornam-se poetas medíocres por causa de leituras igualmente medíocres. Trocar Manuel Bandeira por Cassiano Ricardo, Jorge de Lima pelos irmãos Campos, Bruno Tolentino por Manuel de Barros, Ildásio Tavares por Arnaldo Antunes é querer não ser ninguém, ou coisa alguma, nada. Ouvir os mais velhos e experientes; ser humilde, aceitar o fato de que poder errar, mas também poder se corrigir, porque um poema nunca está, verdadeiramente, terminado; há sempre a algo a mudar, a corrigir, a refazer, tudo pode ser melhorado se houver talento, exercício constante e vontade de construir sempre o melhor. Lembrar-se de que ninguém colhe manga em jabuticabeira, nem todos hão de ser poetas por mais que queiram e é preciso saber a hora de desistir, também. E se já são poetas, acreditar no que acreditam ser algo especial, porque é verdadeiramente especial; a poesia e arte tornam a vida melhor; com a poesia, como diria Gullar, “a vida é mais”, sem dúvidas. Mas, não se iludir... este não é um caminho de glória, muito pelo contrário, por causa da poesia eu ouvi muitas injúrias, muitas mentiras que disseram todo tipo de mal a mim e aos meus. Parafraseando meu velho mestre e amigo, Ildasio Tavares, o melhor conselho, assim como os melhores versos, quem nos deu foi Dante: “Lasciate ogni speranza, voi che entrate”!




sábado, 19 de março de 2011

EMIL CIORAN: AFORISMOS


“Ninguém pode conservar sua solidão se não sabe fazer-se odioso."

“O grande crime da Dor é haver organizado o Caos, havê-lo convertido em universo".

“O paraíso é a ausência do homem.”

“O verdadeiro saber reduz-se às vigílias nas trevas: só o conjunto de nossas insônias nos distingue dos animais e de nossos semelhantes.”

“O momento em que pensamos ter compreendido tudo dá-nos ar de assassinos.”

“O combate que travam em cada indivíduo o fanático e o impostor faz com que não saibamos nunca a quem nos dirigir.”

“Deus é um desespero que começa onde todos os outros acabam.”

“A obsessão pelo suicídio é própria de quem não pode viver, nem morrer, e cuja atenção nunca se afasta dessa dupla impossibilidade.”

“Sobre um planeta que compõe seu epitáfio, tenhamos a dignidade suficiente para nos comportar como cadáveres amáveis.”

“Quanto mais convivemos com os homens, mais nossos pensamentos se obscurecem; e quando, para aclará-los, voltamos à solidão, encontramos nela a sombra que eles projetaram.”

“Quando nem sequer a música é capaz de salvar-nos, um punhal brilha em nossos olhos; nada mais nos sustenta, a não ser a fascinação do crime.”

“Nas épocas em que o Diabo prosperava, o pânico, o horror, as desordens eram males que gozavam de proteção sobrenatural: sabia-se quem os provocava, quem presidia sua expansão; hoje, abandonados a si mesmos, transformam-se em “dramas interiores” ou degeneram em “psicoses”, em patologia secularizada.”

“O que irrita no desespero é sua legitimidade, sua evidência, sua “documentação”: é pura reportagem. Observe, ao contrário, a esperança, sua generosidade no erro, sua mania de fantasiar, sua repulsa ao acontecimento: uma aberração, uma ficção. E é nessa aberração que reside a vida e dessa ficção que ela se alimenta.”

SÔNIA BRANDÃO: AFORISMOS POÉTICOS II



MEMÓRIA


No coração da árvore

a memória do rio.

ABSOLUTO


Uma agulha cerzindo o universo.

DOM

Os homens me deram a dor.

Deus me deu a canção.

ÁRVORE

Teu grito

meu silêncio

frutos da mesma dor.

CIÊNCIA

Meus olhos conhecem

o segredo das pedras.

ESPELHO

No espelho do tempo

a pedra há de florir.

QUIETUDE

No espelho do lago

repousa o silêncio

do sono dos deuses.

A GRUTA

Entre anjos, arcanjos e potestades

estou onde deveria estar.

SÔNIA BRANDÃO: AFORISMOS POÉTICOS





DOR


Mataram as minhas borboletas azuis.


SOLIDÃO

Sou um fruto esquecido
numa árvore morta.

RESÍDUO

Tenho apenas um punhado de areia em minhas mãos.
Mas o mar ainda canta em meus ouvidos.


MEMENTO


Desde o dia em que nascemos

o espelho nos vê como terra.


GREGUERIA

Leve-me flores quando o meu relógio morrer.


PERFÍDIA


Abriguei a rosa no meu peito.

Em troca ela me deu a dor.


A ROSA


Por ela choraram

os olhos do céu.


RÉQUIEM

Arranquem meus olhos.

A flor está morta.


DECISÃO

Entre morrer e não morrer

Escolhi as palavras.

ANTONIO PORCHIA: AFORISMOS




Creio que são os males da alma, a alma. Porque a alma que se cura de seus males, morre.

(Creo que son los males del alma, el alma. Porque el alma que se cura de sus males, muere.)

Cem homens, juntos, são a centésima parte de um homem.

(Cien hombres, juntos, son la centésima parte de un hombre.)

O mal não o fazem todos, mas acusa a todos.

(El mal no lo hacen todos, pero acusa a todos.)

Quem não enche seu mundo de fantasmas, fica só.

(Quien no llena su mundo de fantasmas, se queda solo.)

Uma coisa, até não ser inteira, é ruído, e inteira, é silêncio.

(Una cosa, hasta no ser toda, es ruido, y toda, es silencio.)

És o que necessitam de ti, não o que és.

(Eres cuanto te necesitan, no cuanto eres.)

Quando não se quer o impossível, não se quer.

(Cuando no se quiere lo imposible, no se quiere.)

Ferir o coração é criá-lo.

(Herir al corazón es crearlo.)

O medo da separação é tudo o que une.

(El temor de separación es todo lo que une.)

O amor, quando cabe numa única flor, é infinito.

(El amor, cuando cabe en una sola flor, es infinito.)

Eu pediria algo mais a este mundo, se tivesse algo mais este mundo.

(Yo le pediría algo más a este mundo, si tuviese algo más este mundo.)

Tradução: Marco Catalão

domingo, 13 de março de 2011

A LÍRICA MÍSTICA DE SILVÉRIO DUQUE IV

(Tàpies)


( Verás como crescem estes instantes;
que a luz abandona tudo o que vive;
todos os encontros são sempre os últimos;
há pavor e anseio na eternidade,

pois tudo é memória e disfarce, tudo
é o mesmo vazio que nos leva a nada.
Verás como acabam as coisas, que
tudo é apodrecer... e o resto é fumaça.

Mas, no abandono, Deus está contigo;
na dor, na despedida, na lição
que nos cobram as trevas e o Abismo,

ninguém, além de Deus, irá contigo.
E, além de tudo, está a morte, porque,
mesmo na morte, Deus anda contigo... )



Canta, filha da luz da zona ardente,
o tempo emaranhado em seus retornos,
o amor crescendo à proporção das rotas,
o procriar tardio de tantas mortes...

Porque toda palavra é esquecimento
é preciso cantar: as mesmas pedras,
os mesmos grãos, a solidão da carne,
o chão, o pó, o horror, a cor, a vida,

os frutos que morreram no pé, voz
interrompida no soluço, a névoa,
a manhã debruçada ao sempre verde.

Pois o mesmo final está em tudo
e, em tudo, existe o mesmo aprendizado
– a mesma dor que vai tecendo os homens.



Não sonharei, nem abrirei os meus
olhos a tristes realidades. Breve
é a noite, tua morte e teus achados;
eis o teu rosto e o teu desassossego.

Como amar tuas coisas senão sendo-as?
Como viver senão amando a vida?
– A rosa imensa que aos teus olhos vinha,
o enxame luminoso destes versos,

tornou-se a flora descendente e eterna,
formosa rosa branca imensa e insigne.
É preciso criar quando se crê,

é necessária a fé antes do fim,
rogar por quem ( na fé ) perdeu seu Deus...
Neste poema há mais que a minha vida.



A LÍRICA MÍSTICA DE SILVÉRIO DUQUE III

(Jackson Pollock)




Unifica, Senhor, meu coração
e dá-me o espaço azul entre as palavras;
a Tua face inclui tudo o que existe,
e há em tudo o quanto existe o mesmo sopro;

dá-me os frutos refeitos entre as bocas,
a maciez da carne e seus suplícios,
estas cores advindas de Teus gestos.
Senhor, a noite é escura – e eu tão pouco –

e em tudo sou diverso e sou contrário:
o lugar, o desejo... estas distâncias;
vontade de partir entre os amplexos.

Torna, Senhor, um só o meu coração
perdido entre os cenários e as platéias;
faze de mim Teu instrumento e a Espera.



Nunca mais nossas mãos encontrarão
o espaço entre os temores. Nunca mais
sorveremos o azul das tardes calmas,
das carnes mutiladas pelo tempo.

Vês: esta é a salvação que nos destina
os rumos, os retornos, os espasmos,
pois sempre por palavras entreouvidas
nos vem este abandono: este poema.

Que o Senhor nos conceda o som e a fúria
da voz aprisionada entre os soluços,
– do vôo que existe em meio aos céus e as asas –

nudez de tantas pétalas e chagas –,
da afirmação do amor e suas fugas...
Nunca mais nossas mãos trarão verdades.



Como se o nada fosse um dom perfeito
habitamos, em vão, um vago esboço
de onde nos surge a tela e os seus remorsos –
dois olhos mal despertos se entreabrindo.

Nada há mais a dizer – pois tudo é espanto –
mas há impressões que duram a vida toda.
E, mesmo assim, vagamos pela noite,
de repente, cansados do infinito,

habitantes dos sonhos e das pragas,
nada sabendo sobre o tempo... Toda
palavra se renova em seu ofício,

todo verso vasculha velhas cinzas.
Como quem redescobre antigas chagas,
olhamo-nos como quem olha um berço.



A LÍRICA MÍSTICA DE SILVÉRIO DUQUE II




Que sabes tu dos frutos, das sementes,
da dureza das flores contra o vento?
A aurora vem tragar a noite espessa
de onde brotou, sem dores, o teu grito.

Se a afirmação do amor nos aborrece,
morrer é mera vocação dos vivos,
pois, no morrer de tudo, há um recomeço.
Não queiras mal ao tempo ou ao espanto;

não queiras mal ao grão, à terra escura...
Que sabes tu das trevas ou da carne?
Que sabes tu das noites, dos princípios?

Hoje, é chegado o tempo dos retornos
e toda forma espera o seu ofício
como o vaso existente em todo barro.



Amanhã, nasceremos para o novo:
Deus nos trará o Céu e toda a espera,
separará do joio o incauto trigo,
reinventará, no fogo, estranhas feras.

Amanhã, nasceremos como os lírios,
entre o húmus do tempo e seus odores;
entre a ausência, a saudade, o esquecimento;
entre a sombra de tudo e estranhas flores.

Renascidos da dor que nos liberta,
amanhã, rogaremos outras carnes;
amanhã, pediremos novos rostos.

Mas, hoje, desejamos Teu silêncio;
hoje, Senhor, só a morte desejamos...
somente a Tua face, enfim, rogamos.



Contemplo, em tuas chagas, a beleza
e a memória de tudo o quanto é vivo.
A dor, inda presente, sente a carne;
o amor nos oferece um gesto antigo.

As tuas mãos deslizam sobre as noites
mais escuras e a sombra de teus gestos
desenham novos rumos. Eu reclamo,
em vão, a tua morte e a minha vida;

eu permaneço esquivo em meio as cinzas
e o que vejo me traz teu abandono –
recomeço das coisas esquecidas.

Uma palavra, só, e eu me refaço...
A fome, a sede, a espera... o desespero:
teu corpo vive em mim como uma praga.



Não recordemos rotas nem retornos:
que o verso nos refaça em seus silêncios,
e que as águas nos confundam como as brisas,
e tudo nos dê frutos como o fogo.

Não busquemos a paz da tarde escura,
nem a manhã remida em meio às frestas.
– Teu corpo me é louvor e desengano
e eu sou como que um sopro em teus anseios.

Não aguardemos estas nuvens calmas
perdidas entre o Céu e suas formas,
nem, tampouco, busquemos outros fossos,

outros abismos. Mesmo no abandono
Deus nos concederá o amor e a guerra...
Deus nos trará ( de novo ) a nossa fome.







A LÍRICA MÍSTICA DE SILVÉRIO DUQUE





Grande conforto esta visão da noite,
esta noite existente em cada ouvido,
qual o mar encarcerado em cada concha...
Há, em cada sonho, um anjo adormecido,

a despojar, da dor, toda verdade;
a mesma dor que nos revela as faces
que escondemos outrora em meio aos gritos.
E há, em cada despertar, o mesmo sonho,

do íncubo anjo, em seus olhos, revivido,
e, em seus olhos, o mesmo e estranho brilho
desta escada submersa e intermitente

entre as vagas, o Céu e a noite escura:
é a solidez das horas de Esaú –
hirsuto hebreu sem paz e sem lentilhas.



Bendito seja todo esquecimento;
bendita, também, seja toda sede
e tudo mais que nos desperte a carne
ou que nos torne estranhos ante o espelho.

Bendito o nosso instante mais impuro;
o que sobrou de nós e o nosso início –
tanto vazio e cor num só começo –,
tantas mortes das quais nos refazemos.

Que Deus nos abençoe por entre as pedras
com o ressoar cruel do vão destino;
e que eu O veja inteiro ( em cada passo )

– e que possas senti-Lo em meio aos braços
com os quais, na dor, abraças teus joelhos...
Bendita seja a paz destes silêncios.



Navegas meus temores como um barco,
sem adeuses, silêncios, nem presságios
que esperarão por nós em cada porto...
Vestido com a dor de antigas feras

eu vejo, em cada cais, os mesmos arcos
redesenhando o fim de iguais jornadas,
refeitas tantas vezes entre os loucos
que avistam, entre sonhos, outros mares.

Para imitar, do mar, seu renascer
eterno – seu começo tantas vezes
já desfeito –, navegas meus temores

neste barco sem velas e sem leme,
mas com as formas e a cor do teu intento,
neste vagar sem fim entre as procelas.



quinta-feira, 10 de março de 2011

BALTASAR GRACIÁN: MÁXIMAS OU AFORISMOS




“Nem o ódio nem a lisonja são cristais fiéis: adulteram a verdade; aquele das virtudes faz vícios, e esta, dos vícios, virtudes.”

“Todos os homens são idólatras, uns da honra, outros do interesse e a maior parte do prazer”.

“O silêncio é o santuário da prudência.”

(Baltasar Gracián)

FRANCISCA CLOTILDE: POEMA




AO CORAÇÃO


Porque suspiras, coração dolorido?
Ermo de afetos, cheio de amargura!
Fugiu de ti a plácida ventura!
Eis-te sozinho, a suspirar descrido!

Não mais no mundo pérfido, iludido.
Serás de afetos vãos da criatura,
Brilha em teu céu uma esperança pura,
É Deus que atenta o ser desiludido!

Busca o conforto místico, que vem
Trazer-te a luz, que dimanou do bem,
E que fulgiu nos braços de uma cruz;

Despreza os bens efêmeros da terra,
Busca o tesouro que somente encerra
O amor perfeito que sonhou Jesus.

AUTA DE SOUZA: POEMA



ORAÇÃO DA NOITE

Ajoelhada, ó meu Deus, e as duas mãos unidas,
Olhos fitos na Cruz, imploro a tua graça...
Esconde-me, Jesus! da treva que esvoaça
Na tristeza e no horror das noites mal dormidas,

Maria! Virgem mãe das almas compungidas,
Sorriso no prazer, conforto na desgraça...
Recolhe essa oração que nos meus lábios passa
Em palavras de fé no teu amor ungidas.

Anjo de minha guarda, ó doce companheiro!
Tu que levas do berço ao porto derradeiro
O lúrido batel de meu sonhar sem fim,

Dá-me o sono que traz o bálsamo ao tormento,
Afoga o coração no mar do esquecimento...
Abre as asas, meu anjo, e estende-as sobre mim.


Macaíba - 3 de Abril de 1899.

quarta-feira, 9 de março de 2011

SOARES PASSOS: POEMA




O FIRMAMENTO

Glória Deus! Eis aberto o livro imenso,
O livro do infinito,
Onde em mil letras de fulgor intenso
Seu nome adoro escrito.
Eis do seu tabernáculo corrida
Uma ponta do véu misterioso:
Desprende as asas, remontando à vida,
Alma que anseias pelo eterno gozo!


Estrelas, que brilhais nessas moradas,
Quais são vossos destinos?
Vós sois, vós sois as lâmpadas sagradas
De seus umbrais divinos.
Pululando do selo onipotente,
E sumidas por fim na eternidade,
Sois as faíscas do seu carro ardente
A rolar através da imensidade.


E cada qual de vós um astro encerra,
Um Sol que apenas vejo,
Monarca doutros mundos como a terra
Que formam seu cortejo.
Ninguém pode contar-vos: quem pudera
Esses mundos contar a que dais vida,
Escuros para nós, qual nossa esfera
Vos é nas trevas da amplidão sumida.


Mas vós perto brilhais, no fundo acesas
Do trono soberano;
Quem vos há de seguir nas profundezas
Desse infinito oceano?
E quem há de contar-vos nessas plagas
Que os céus ostentam de brilhante alvura,
Lá onde sua mão sustém as vagas
Dos sóis que um dia romperão na altura?


E tudo outrora na mudez jazia,
Nos véus do frio nada;
Reinava a noite escura; a luz do dia
Era em Deus concentrada.
Ele falou! e as sombras mim momento
Se dissiparam na amplidão distante!
Ele falou! e o vasto Armamento
Seu véu de mundos desfraldou ovante!


E tudo despertou, e tudo gira imerso em seus fulgores;
E cada mundo é sonorosa lira
Cantando os seus louvores.
Cantai, ó mundos que o seu braço impele,
Harpas da criação, fachos do dia,
Cantai louvor universal Àquele,
Que vos sustenta e nos espaços guia!


Terra, globo que geras nas entranhas
Meu ser, o ser humano,
Que és tu com teus vulcões, tuas montanhas,
E com teu vasto oceano?
Tu és um grão de areia arrebatado
Por esse imenso turbilhão de mundos
Em volta de seu trono levantado
Do universo nos seios mais profundos.


E tu, homem, que és tu, ente mesquinho
Quando soberbo te elevas,
Buscando sem cessar abrir caminho
Por tuas densas trevas?
Que és tu com teus impérios e colossos?
um átomo sutil, um frouxo alento!
Tu vives um instante, e de teus ossos
Só restam cinzas, que sacode o vento.


Mas ah! tu pensas, e o girar dos orbes
À razão encadeias;
Tu pensas, e inspirado em Deus te absorves
Na chama das idéias:
Alegra-te, imortal, que esse alto lume
Não morre em trevas num jazigo escasso!
Glória a Deus, que num átomo resume
O pensamento que transcende o espaço!


Caminha, ó rei da terra! se inda és pobre
Conquista áureo destino,
E de século em século mais nobre
Eleva a Deus teu hino;
E tu, ó terra, nos floridos mantos
Abriga os filhos que em teu seio geras,
E teu canto de amor reúne aos cantos
Que a Deus se elevam de milhões de esferas!

Dizem que já sem forças, Moribunda,
Tu vergas decadente:
Oh! Não! De tanto Sol que te circunda
Teu Sol inda é fulgente;
Tu és jovem ainda: a cada passo
Tu assistes de um mundo às agonias,
E rolas entretanto nesse espaço
Coberta de perfumes e harmonias.


Mas ai! tu findarás! Além cintila
Hoje um astro brilhante;
Amanhã ei-lo treme, ei-lo vacila,
E fenece arquejante.
Quem foi? Quem o apagou? Foi seu alento
Que extinguiu essa luz já fatigada,
Foram séculos mil, foi um momento
Que a eternidade fez volver ao nada.


Um dia, quem o sabe? um dia ao peso
Dos anos e ruínas,
Tu cairás nesse vulcão aceso
Que teu Sol denominas;
E teus irmãos também, esses planetas
Que a mesma vida, a mesma luz inflama,
Atraídos enfim, quais borboletas,
Cairão como tu na mesma chama!


Então, ó Sol, então nesse áureo trono,
Que farás tu ainda,
Monarca solitário, e em abandono,
Com tua glória finda?
Tu findarás também, a fria morte
Alcançará teu carro chamejante:
Ela te segue, e profetiza a sorte
Nessas manchas que toldam teu semblante.


Que são elas? Talvez os restos frios
De algum antigo mundo,
Que inda referve em borbotões sombrios
No teu seio profundo,
Talvez, e envolta pouco e pouco a frente
Nas cinzas sepulcrais de cada filho,
Debaixo deles todos de repente
Apagarás teu vacilante brilho.


E as sombras passarão no vasto império
Que teu facho alumia;
Mas que vale de menos um saltério
Dos orbes na harmonia?
Outro Sol como tu, outras esferas
Virão no espaço descansar seu hino,
Renovando nos sítios onde imperas
Do Sol dos Sóis o resplendor divino.


Glória a seu nome! Um dia meditando
Outro céu mais perfeito,
O céu d'agora ao seu altivo mando
Talvez caia desfeito.
Então mundos, estrelas, Sóis brilhantes,
Qual bando d’águias na amplidão disperso,
Chocando-se em destroços fumegantes,
Desabarão no fundo do universo.


Então a vida, refluindo ao seio
Do foco soberano,
Parará concentrando-se no meio
Desse infinito oceano:
E, acabado por fim quanto fulgura,
Apenas restarão na imensidade:
— O silêncio, aguardando a voz futura,
O trono de Jeová, e a eternidade!

quinta-feira, 3 de março de 2011

ROMMEL WERNECK: POEMA

(Tàpies)




LÚBRICA MIRAGEM NA ÁFRICA


África... No escuríssimo deserto
Desliza e nada pela rubra areia,
Pelas dunas do caos noturno e incerto,
Uma perdida e esplêndida sereia...


Seguimos pelo mar vermelho e aberto
Com bocas glaciais de nossa ceia.
Enquanto tu descansas, eu desperto
Para mais aventuras quentes... Eia!


Na savana, aparece uma leoa...
Morde e desmorde, a cândida selvagem,
Qualquer animal, planta e até pessoa!


Transparente se torna a fria imagem...
Um rugido sereno urge e ressoa...
Surge e ressurge a lúbrica miragem!