quarta-feira, 30 de junho de 2010

ENTREVISTA COM O POETA JORGE ELIAS NETO



1) – Como ocorreu seu contato inicial com a poesia?

É natural e salutar que o leitor se interesse pela trajetória do autor. Entretanto, sempre me questiono sobre a relevância de saber os como e porquês da vida de um autor. Digo isso por considerar que muitos autores buscam, com níveis variados de consciência de o estarem fazendo, promover sua imagem; elevá-la a um patamar acima de seus escritos. Meu olhar de médico me faz ver que nesse nosso tempo de internet e tantas outras mídias corremos o risco de contrair uma “multimidiaíte” (deveras contagiosa). Com isso não concordo, daí tentar monitorar (com a rigidez que me é possível) o SUPER EU dentro de mim. Com essa ressalva, sobre buscar me resguardar de extremos, tento estabelecer um nível apropriado para iniciar a resposta à sua pergunta. A minha infância e, por conseguinte, toda minha vida, foi marcada por duas pessoas que despertaram o poeta que hibernava em mim. Quando tinha aproximadamente 5 anos, minha avó saiu do sertão do Rio Grande do Norte para morar em minha casa. Ela trouxe na bagagem a memória viva do povo sertanejo. Analfabeta, decorou tudo que ouviu de seus antepassados, poemas, versos, músicas e longas histórias. Eu passava horas, diariamente, deitado em seu colo ouvindo-a, apaixonado, cantar e recitar cordéis. Ela era considerada a guardiã das histórias em sua cidade de origem. Somente para complementar, ensinei-a a ler e escrever o nome quando tinha 74 anos. Depois ela buscou, voluntariamente, o Mobral para se alfabetizar e poder saborear, orgulhosa, a leitura dos jornais diários. A outra personagem, digo isso porque existe muito de fantasia de criança em torno dela, foi meu irmão mais velho. Meu irmão foi o primeiro poeta que idolatrei (sem ter lido ao menos um poema de sua autoria). Jornalista, hippie, monge budista, franciscano, sertanista (chegou a morar 4 anos na Amazônia com uma tribo indígena na década de 70), meu irmão alimentou meu imaginário com sua vida riquíssima. Faleceu aos 28 anos. Quando vi, aos 9 anos de idade, estava sentado com um grosso livro de poemas dos parnasianos e românticos, todos os recreios, lendo, copiando e escrevendo meus primeiros sonetos.

2) – Como é seu procedimento ao escrever um poema?

Em 2004, quando voltei, após uma longa pausa de 25 anos, a escrever regularmente, foi como abrir uma comporta. Escrever era uma ebulição, tudo fluía de maneira desesperada. Coube apenas puxar o gatilho, e me desviar do tiro. Escrevia vários poemas por dia. Confesso que era pura inspiração e pouquíssimo trabalho. Devido a correria do trabalho, tive que aprender a não “perder” as palavras. De um local para o outro, dirigindo, os poemas e as palavras foram chegando, primeiro eu decorava, depois passei a gravar no celular. Cheguei a dirigir 400 Km com um poema quase pronto, repetindo, repetindo, até conseguir registrá-lo. Fui adquirindo um método; hoje registro palavras, faço colagens, trabalho mais os poemas. Retorno depois para rever e refletir. Mas tenho muito que aprender.

3) – O que é poesia para Jorge Elias Neto?

Poesia para mim é pulsão de vida. Quando ganhei uns prêmios com letras de música na infância e adolescência; quando eu lia meus poemas para as diversas musas, eu me via, no olhar dos outros, um diferente, um estranho; não sabia que era um poeta. Hoje, vejo na poesia, minha forma de resgatar o melhor de mim que não soube ser. Por isso essa necessidade de produzir uma poesia compreensível e que tenha um tipo de visgo que cole no leitor – o que trago colado em mim. Poesia é emoção, é grito, é desfrutar do dom de transformá-la em poema, de ser uma barriga de aluguel. Como eu disse em uma entrevista para o site SOPA DE POESIA: “optei pela vida e tento levá-la da forma mais intensa possível – tento insistentemente entende-la. Rolo as pedras, e coloco nos poemas meu processo de aprendizado.”

4) – Como você vê o atual panorama da poesia brasileira contemporânea? Quais poetas você destacaria?

Como não poderia deixar de ser em um País como o nosso, vejo uma poesia diversa, multifacetada. Costumo dizer que para tudo existe um peso, uma medida e uma visão distorcida. Mas não podia omitir a minha visão. Não creio que se tenha um caminho único a ser trilhado – pelo contrário – mas tenho observado um favorecimento da busca pura e simples da abstração, do uso “despretencioso” das palavras; como se o poeta se sujeitasse aos novos paradigmas impostos pela atual visão caleidoscópica da arte (patrocinada pelo mercado editorial); pela trilha atribulada e veloz da globalização. Quanto a segunda questão, retomei minha leitura de poemas nos últimos 6 anos, naturalmente busquei inicialmente os cânones e, somente com a criação de meu blog, passei a conhecer melhor meus contemporâneos. Digo isso para me redimir da exclusão daqueles que ainda não li mais detalhadamente. Iniciaria com Ferreira Gullar e Manuel de Barros pelos quais tenho grande adoração. Destacaria também Eucanaã Ferraz, Fabiano Calixto, Romério Rômulo, Mariana Ianelli, Ruy Espinheira Filho, Affonso Romano Sant'anna, meu falecido amigo Miguel Marvilla e Fabrício Carpinejar. O portal Cronópios apresenta um grupo de poetas que gosto muito. Sirvo-me das indicações de poetas nordestinos no SOPA DE POESIA. Foi lá que travei conhecimento com a poesia de Gustavo Felicíssimo, Heitor Brasileiro, Silvério Duque e conheci a obra de Alberto da Cunha Melo e Bruno Tolentino.

5)- Fale sobre seu novo livro de poesias e sua diferença em relação ao anterior.

Meu primeiro livro, Verdes versos, propositalmente distribuído em quatro capítulos, que representam os anos que os poemas foram escritos, é fruto do impulso de publicar. Ele vale como registro pessoal. Vários poemas, hoje, teriam ficado guardados, embora estejam lá alguns dos poemas que mais gosto. Representa a fase que me referi como explosiva. Nele é possível vislumbrar uma transição para algo de próprio, no fazer poema. O nome sintetiza o livro: versos verdes, de um iniciante, trabalhando suas memórias e verdes versos – meu profundo amor e preocupação com a Mata Atlântica. Rascunhos do absurdo centra força na minha preocupação enquanto homem, na elaboração do absurdo, ao meu ver, brilhantemente abordado por Camus. Aqui cabe dizer que o livro chamar-se-ia “O estalo da palavra” – que passou a ser o nome do capítulo possivelmente mais polêmico do livro. Creio que nesse livro eu já consiga definir uma linguagem pessoal. Eu tinha um número significativo de poemas e, juntamente com Gustavo Felicíssimo que colaborou com a organização, consegui um livro com poemas fortes e provocantes, como eu intencionava. É um livro que me emociona muito.

6) – Como você vê a importância da internet para a divulgação da poesia contemporânea?

Veja meu caso, sem internet você não saberia de minha poesia, eu não teria a possibilidade de divulgar meu trabalho. Vejo nisso um enorme e inconteste avanço. O mesmo se dá com vários outros poetas. Esse congraçamento é altamente válido. Temos o Portal Cronópios, a revista literária Germina e Zunái, isso é uma maravilha. Temos acesso ao trabalho de aglutinação e resgate realizado pelo Gustavo Felicíssimo no sul da Bahia. Temos Soares Feitosa, a revista Agulha (infelizmente com edições interrompidas). Como último exemplo, lembro a recente publicação pela Dulcineia catadora do livro-dvd H2HORAS capitaneado pelo Pipol do CRONÓPIOS, com a participação de autores de todo País – sem a internet isso seria quase impossível de ocorrer. A internet possibilita uma maior democratização, uma maior abertura e equalização; é possível “dar a partida”. O que me preocupa é a postura do poeta, a falta de questionamento da importância que ele pode dar aos elogios, aos aplausos, a um certo corporativismo que a internet proporciona. Não que isso já não seja uma características das relações humanas... Foi o que já pontuei em minha primeira resposta. A internet é apenas um grande instrumento, é o homem que pode ou não gerar um viés de uso.

7) – O que você diria como forma de conselho para aqueles que estão se iniciando na prática da poesia?

Talvez meu conselho seja não fazer o que fiz. Pois nascemos poetas e temos que amar e nos orgulhar deste dom. Devemos conservar nosso olhar para a vida (o que me salvou). Ler absurdamente, apaixonadamente, pacientemente os clássicos e nossos contemporâneos. Escrever, guardar as palavras; “deixá-las ao relento” como disse meu amigo Miguel Marvilla. Estabelecer seu método do fazer poético. Não se deixar desviar, acalmar, estagnar por conta dos elogios. Saber receber e julgar as criticas – definir a relevância do que os dizem. Mas, sobretudo, não deixar-se esmorecer; escrever com honestidade e com a consciência da insignificância relativa de tudo que somos e produzimos – aproveitar a força de sua racionalidade e a energia que emana de seu coração de poeta. O poeta é o protótipo do herói absurdo, tal qual Sísifo.

8) – Como você vê a relação entre a tradição e os movimentos de vanguarda no âmbito da poesia? Existe uma tradição perene na poesia?

Como leitor autodidata, sempre evitei externar minhas percepções a este respeito. Assumo que tenho muitas dúvidas e incertezas. Mas tenho observado que ao analisar criticamente, como leitor, o meu em torno, amplio meu entendimento da poesia, e, quem sabe, colaboro com a coletividade. O meio editorial tem sido um tanto restritivo, fazendo com que para aqueles que não navegam na internet e tem acesso aos poemas em livro, tenham uma falsa idéia que atualmente predomina uma poesia com as características que enumerei anteriormente. Já na rede é que podemos observar que existem poetas com uma trajetória diversa. Como tem que ser. Concordo com Antônio Cícero em não ver espaço para vanguardas. O que existe é a singularidade de olhar de cada poeta buscando lidar com as questões primevas e com seu cotidiano. Não concordo quando poetas colocam-se como verdadeiros antípodas defendendo o que acreditam ser a verdadeira linguagem da poesia de seu tempo. Uso um fragmento do prefácio de Sagarana, escrito por Paulo Rónai em 1946. Embora o gênero comentado pelo autor seja a prosa (no caso os contos e novelas), ele cabe bem nesse momento : “Os desesperados esforços de renovação que caracterizam o gênero de algum tempo para cá geram fórmulas mais de uma vez surpreendentes e inéditas, mas dificilmente despertam emoções profundas”.
E é a emoção que busco nos poemas.

Jorge Elias Neto (1964) Natural de Vitória/ES. Médico cardiologista, pesquisador e poeta. Publicou Verdes versos (Vitória: Flor&cultura, 2007) e Rascunhos do absurdo (Vitória: Flor&cultura, 2010). Poemas publicados em diversas antologias poéticas. Participa de vários portais e sites de literatura. Escreve o blogue O Estalo da Palavra.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

HELENA FIGUEIREDO: O BURACO

(Eduardo Fiel)

Acordou com ele, mesmo no centro da testa. Enorme, profundo, esverdeado nas bordas, o que seria aquilo? "São as tuas maldades" disse-lhe a mãe, o rosto enrugado de tanta preocupação. Não se considerava um menino de coro, nem sequer a idade lho permitia, e deixava-se levar por chamamentos maliciosos, jurados até à morte entre o grupo, na penumbra do velho castanheiro. Ninguém desconfiaria daqueles rapazes, tão educados, tão prestativos, tão amigos dos mais velhos. Considerou aquela maldita reentrância, um aviso sério, e sem efeito, o assalto à cerejeira do vizinho Manel. Teria mais cautela, senão, no dia que aquilo rebentasse, ver as suas ideias espalhadas por todo o lado, feitas tinta permanente escorrendo das paredes, seria demasiado para ele. Até que numa noite, em que um lume forte lhe queimava as entranhas, desesperado, levou as mãos à cabeça, e no mesmo instante, todo o fogo se extinguiu. "Demasiado lógico", disseram os amigos, "fogueiras de amor, deves guardá-las mais abaixo, a meio do peito."

E foi assim, que o rapaz descobriu, que aquele vácuo, enorme e profundo, onde instantaneamente, morriam todas as chamas, se chamava, razão.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

POEMA

(Oswaldo Goeldi)
O EQUÍVOCO

A José Arnaldo

Tempo de dizer, que meias palavras não bastam.
Que o esforço resultou inútil.

Tempo de dizer, que o abraço não se fez cálido,
e sim amargo, hostil.

Tempo de dizer, que tampouco há esperança.
Vivemos e não somos recompensados.

O desamparo consome a relutância
daqueles que persistem.

Os dias perduram no pó de contradições.
Juntas elas formam o equívoco da vida.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE: O AMOR NATURAL


(Agostino Carracci)


A CASTIDADE COM QUE ABRIA AS COXAS

A castidade com que abria as coxas
e reluzia a sua flora brava.
Na mansuetude das ovelhas mochas,
e tão estreita, como se alargava.

Ah, coito, coito, morte de tão vida,
sepultura na grama, sem dizeres.
Em minha ardente substância esvaída,
eu não era ninguém e era mil seres

em mim ressuscitados. Era Adão,
primeiro gesto nu ante a primeira
negritude de poço feminino.

Roupa e tempo jaziam pelo chão.
E nem restava mais o mundo, à beira
dessa moita orvalhada, nem destino.


terça-feira, 22 de junho de 2010

POEMAS DE MINHA AUTORIA NA REVISTA GERMINA

A excelente revista Germina publicou uma seleção de meus poemas. Aos editores dessa maravilhosa revista minha gratidão!
http://www.germinaliteratura.com.br/hilton_valeriano.htm

sábado, 19 de junho de 2010

ENTREVISTA COM O POETA GUSTAVO FELICÍSSIMO


1) – Como ocorreu seu contato inicial com a poesia?

GF – Comigo ocorreu algo singular, pois antes mesmo de travar contato com a obra de algum poeta eu já fazia as minhas anotações. Eu sentia algo poderoso pulsando fortemente dentro de mim. Aquilo me movia. Era a poesia e eu não sabia ao certo. Então, quando li Drummond e Neruda, que foram os meus primeiros poetas, houve um grande deslumbramento, fui arrebatado de vez. A Literatura de Cordel também exerceu grande fascínio sobre mim.

2) – Como é seu procedimento ao escrever um poema?

GF – Acho que não difere muito do procedimento de outros autores. A criação nunca acontece de modo aleatório, ela se dá através de muito empenho, trabalho mesmo, até a exaustão às vezes. Após escrito o poema vai pra gaveta, onde fica por um tempo até passar a euforia que me causa. Quando volto a ele é que acontece geralmente aquele trabalho de polimento. Para mim é aí que começa verdadeiramente o trabalho do poeta.

3) – O que é poesia para Gustavo Felicíssimo?

GF – O conceito de poesia é muito amplo. Há poesia desde o belíssimo pôr-do-sol em Ilhéus, até um assassinato. Transformar a poesia que está aí em um poema é outra coisa, requer muito apuro estético. Já o poema, para mim, é algo material e palpável, um objeto como qualquer outro, muito embora seja um objeto de arte, uma revelação.

4) – Como você vê o atual panorama da poesia brasileira contemporânea?

GF – Em todos os tempos houve bons e maus poetas. Hoje em dia não é diferente. O que difere um de outro é que, como diz Ildásio Tavares, o grande criador esmera-se por sua obra, já o criador pequeno esmera-se pela sua pessoa. Vejo que um está preocupado em dar ao texto um valor de interesse fundamental; o outro proporciona obras de intelecção apenas abstrata.

5) – Mesmo tendo nascido em Marília, interior de São Paulo, como você vê a relação entre tradição poética e movimentos de vanguarda em se tratando da Bahia?

GF - Moro na Bahia desde 1993, primeiramente em Salvador, agora entre Itabuna e Ilhéus, onde acaba de nascer minha filhota. Portanto, quase metade da minha vida. Aliás, após a infância, as melhores coisas da minha vida aconteceram aqui. Por isso a Bahia me é tão cara. Foi convivendo com escritores daqui que vivi todo meu processo de maturidade intelectual. Então é isso. Eu falo oxênte e como Caruru, sacou?
Quanto ao que me pergunta: A Bahia é vanguarda e tradição desde sempre. Nossos grandes vanguardistas, como todo grande vanguardista, desde Gregório de Mattos, são ousados ao mesmo tempo em que possuem um pé na tradição. Certa feita, ao entrevistar rapidamente o Tom Zé, perguntei-lhe sobre essa idéia fixa de desconstrução em sua obra, no que ele respondeu dizendo ser impossível desconstruir o que não se sabe como se constrói. Como diz a canção do Gilberto Gil: Deus entendeu de dar a primazia/ pro bem, pro mal/ primeira mão na Bahia.

6) – A inovação em termos de poesia é sempre necessária? Existe uma tradição perene em regiões especificas do nosso país, como o Grande Nordeste?

GF – Acho que em termos de literatura tudo já foi feito e dito. Mudam-se os suportes, as formas, mas o poema, temas e idéias continuam imutáveis. Sinto que o poeta mais que inovar precisa, em verdade, reinventar seu universo particular. Nisso, todos são iguais.

7) – O que você diria como forma de conselho para aqueles que estão se iniciando na prática da poesia?

GF – Que trabalhem por suas obras não por seus nomes. Alguma reputação e reconhecimento, se acontecer, acontecerá em decorrência da qualidade dos seus poemas. O resto é ufanismo e auto-promoção.

8) – Qual a importância de um poeta como Alberto da Cunha Melo para sua poesia e a poesia brasileira?

GF – Ele foi um autor formidável, refinado e diferenciado, dialoga com as tradições e com a modernidade, é inventivo, lírico e irônico. Qualquer escritor que tenha essas qualidades poderá por certo ser considerado um grande escritor. Creio que sua importância ainda está para ser avaliada, precisa de mais tempo, embora muitos jovens escritores estejam cultuando a Retranca (forma fixa que ele criou) Brasil a fora. Para mim o Alberto, assim como outros grandes poetas, serve como espelho, modelo para uma poesia transcendente. Escrevo Retrancas porque é uma forma que internalizei muito bem, assim como foi também com o Haikai e o chamado Verso Livre, que de livre não tem nada, pois um poema jamais se verá livre da forma, daqueles elementos que nos falam Aristóteles e Ezra Pound. Quais sejam: ritmo, imagens, harmonia e idéia. Geniais são os poetas que trabalham com esses elementos em harmonia. O Alberto da Cunha Melo é um deles.

GUSTAVO FELICÍSSIMO: POEMA

(Agostino Carracci)

O CREDO DE DON JUAN

(Poema vencedor do Prêmio Bahia de Todas as Letras, Edição 2009)

Creio num Deus vil e atormentado
tal qual o mar quando a lua surge esquiva
com seu canto afastado, porém audaz,
arrogante em meio às visões de bem e mal,
cego ante a face exaurida do amor.
Creio nesse Deus, cujo reino não tem fim,
e ao mundo lanço o meu laço sabendo que após o gozo
viverei contraditória agonia.
Assim, como um ciclo que nunca se cumpre,
volto aos braços da sedução,
náufrago e só, tecendo a minha teia.
O fogo aquece meu corpo e não arrefece,
mas a alma, dos seus tormentos não se esquece,
escarnece o céu não por prazer, mas por convicção.
Ah, ter escrúpulos é não ter mesmo nada!

domingo, 13 de junho de 2010

MÁXIMAS OU AFORISMOS V


178

O que nos revela a mentira senão a nossa incapacidade pela verdade?

179

Para todas as verdades há sempre a mentira do século.

180

Acreditamos ser razoáveis quando desprezamos as injúrias sofridas, mas no fundo isso apenas revela a impotência de nossos atos no âmbito da vingança.

182

No amor pagamos tributo de nossos defeitos assim como de nossos melhores intentos.

181

Como bons expectadores da vida, raramente consentimos no esquecimento dos vícios alheios.

182

Mulher: insídia das virtudes.

183

A face obscura de Deus: a crueldade que se revela humana.

184

Se ao ponderarmos sobre o valor de uma pequena alegria percebemos toda a fragilidade que lhe é peculiar, aprenderemos, enfim, a ter reverência pela vida.

185

Sem Deus não há humanidade possível.

187

Não há calamidade maior do que o homem na sua recusa em ser humano.


188

Não é por sermos livres que podemos ser cruéis, mas sim por sermos humanos.


189

Tão própria à natureza humana, a beleza também poder ser a traição de seu gênero.

191

Não há melhor forma de punir os homens do que retirar de suas mãos a possibilidade de sua redenção.

192

Não raro, nos abismos do coração ressoa a culpa de toda a humanidade.

193

Há no amor algo de divino e demoníaco. Nunca apreendemos o outro, somente nossas considerações afetivas.

194

No sexo, o silêncio do espírito ressoa as contrações da carne.

195

Somente a verdade pode conduzir o homem à descoberta de que a mentira pertence à sua natureza.

196

Se fosse possível ao homem encontrar a verdade de sua condição ele a destruiria na ânsia de possuí-la.

197

Somos cúmplices de todas as traições possíveis ao acreditarmos na verdade de nossa condição.

198

Para algumas horas o temor é possível, para a eternidade é apenas desespero.

Obs: aforismos de minha autoria protegidos por direitos autorais.

sábado, 5 de junho de 2010

A ARTE DA XILOGRAVURA: ENTREVISTA COM SEVERINO BORGES







1 – Quando ocorreu seu contato inicial com a arte da xilogravura?

Desde pequeno que vejo esse trabalho, em casa e na casa de meu tio J. Borges, mais foi em Olinda que comecei fazer minha xilo, estava desempregado e Pai (AMARO FRANCISCO) me chamou para ajudar ele e aí eu comecei 94 se não me engano.

2 – Fale um pouco sobre as origens da xilogravura.

Na minha família começou com J. Borges depois pai, Amaro Francisco e aí pelos primos e outro da família, tudo pela necessidade de sobreviver.

3 – Quais são suas influências nessa arte?

Eu consegui criar outros artigos que antes as pessoas não tinham, como bolsas, azulejos que já tinha no Ceará e em Pernambuco não, e em Recife fiz uma loja com o nome XILOGRAVURA isso deu uma divulgação de boca a boca muito legal. Na casa da cultura em recife tem 105 lojas e só tinha xilo na minha loja aí os clientes procuravam pela casa, com isso as outras lojas começaram a comprar aos outros artistas também, com isso a xilo foi lá pro auto virou moda em recife e no Brasil.

4 – Como você vê a relação entre a arte da xilogravura e a poesia?

Tem tudo haver, nossa arte começou por conta da poesia, J. Borges fez sua primeira xilo para um de seus cordéis, uma anda de lado da outra. A xilo pernambucana começou por conta da poesia popular os cordéis.

5 – Quais artistas você destacaria na arte da xilogravura?

Têm muitos. Admiro muito J. Borges por ser o pioneiro na minha família e meu Pai AMARO FRANCISCO, analfabeto, pedreiro sem nenhuma formação só a da vida, fez xilos maravilhosas.

Xilogravura.zip.net

sexta-feira, 4 de junho de 2010

FERREIRA GULLAR: A LUCIDEZ DE UM GRANDE POETA



Por Armando Antenore


Poeticamente, você jamais permaneceu num único lugar e sempre procurou a renovação. Em contrapartida, como crítico, acabou recebendo a pecha de conservador, por rejeitar diversas manifestações da arte contemporânea. O rótulo o incomoda?


Não, não me incomoda. Nesta altura do campeonato, quando o vale-tudo se apoderou das artes plásticas, a qualificação de "conservador" perdeu sentido. Conservador por quê? Por diferenciar expressão e arte? No meu entender, toda arte é expressão, mas nem toda expressão é arte. Se me machuco e grito de dor, estou me expressando; não estou produzindo arte. Da mesma maneira, se alguém começa a bater numa lata, emite sons; não cria música. O filósofo francês Jacques Maritain, católico, afirmava que a arte é "o Céu da razão operativa". Ou melhor: é o ápice do trabalho humano. Arte, portanto, pressupõe o "saber fazer". Saber pintar, saber dançar, saber esculpir, saber fotografar, saber tocar, saber compor. Tal critério prevaleceu durante milhares de anos, desde as cavernas até o advento das vanguardas, no final do século 19, período em que se questionou o "saber fazer". Pois bem: sob a minha ótica, a preocupação vanguardista é um fenômeno que se esgotou. Por milhares de anos, a arte seguiu adiante sem ligar para o conceito de vanguarda. Ninguém me convencerá de que, em pleno século 21, crucificar-se na traseira de um Fusca, deixar-se filmar cortando a vagina ou masturbar-se numa galeria equivale a um gesto artístico. Segundo o norte-americano John Canaday, historiador da arte, os críticos de hoje temem repetir o erro cometido pelos críticos do século 19, que não compreenderam os impressionistas. Em consequência, assinam embaixo de qualquer bobagem que levante a bandeira do "novo". Percebe a armadilha? Caso três ou quatro artistas resolvam espremer uma bisnaga de tinta no nariz de um crítico, ouvirão dele que praticaram um ato inovador. Definitivamente, não penso desse modo.


Nos tempos de militância comunista, você usou a poesia com fins políticos. O engajamento dos poetas ainda se justifica?


Não, de jeito nenhum. Os poetas, agora, irão se engajar em quê? No socialismo ridículo do Hugo Chávez? Foi um engano imaginar que versos contribuiriam para a revolução social. Admito que um poema consiga iluminar o leitor, consiga lhe abrir a cabeça. Mas daí a mudar a sociedade... Muito complicado! Abandonei todos os mitos daquela época. Não creio mais em luta de classes. Já aprendi que o capitalismo é como a natureza: invencível.

A DISTÂNCIA E AS IMAGENS

(Kandinsky)


A distância e as imagens. Será que o gosto pelo mundo de imagens não se alimenta de uma sombria resistência contra o saber? Corro os olhos pela paisagem: o mar está em sua baía, liso como um espelho; bosques sobem até o cume da montanha como massas imóveis e mudas; em cima, ruínas abandonadas de castelo, como se encontram há séculos. É assim que deseja o sonhador. Que esse mar se ergue e se afunda em bilhões, mas bilhões, de ondas; que os bosques estremecem a cada novo instante desde as raízes até a última folha; que, nas pedras das ruínas dos castelos, reinam um desmoronar e um esfarelar contínuos; que, no céu, antes que se formem nuvens, gases fervem em lutas invisíveis – de tudo isso tem de se esquecer para se entregar às imagens. Nelas tem repouso, eternidade. Cada bater de asas de pássaro que o roça, cada rajada de vento que o faz estremecer, cada proximidade que o toca, lhe pune as mentiras. Porém, cada distância reconstrói seu sonho, que fica apoiado em paredes de nuvens, que torna a se inflamar em cada janela iluminada. E o sonho aparece como o mais perfeito, se consegue tomar do movimento o seu ferrão e transformar a rajada de vento num sussurro e a passagem casual dos pássaros na migração dos pássaros. Assim, pôr termo à natureza na moldura de imagens esvanecidas é o prazer do sonhador. Conjurá-lo sob uma nova chamada, o dom do poeta.

Walter Benjamin, Rua de mão única. Ed. Brasiliense

quinta-feira, 3 de junho de 2010

JEFFERSON BESSA: POEMA

(Caspar David Friedrich)
MURO

só compreendo um muro
vendo o homem primeiro
sentado em meio aos montes-
em abrigo receoso
só compreendo um muro
se vejo esse mesmo homem
pisando a marcação
na vertigem das posses
só compreendo um muro
pelo medo nostálgico
do homem que via o sol
se pôr antes da noite
só compreendo um muro
se a guarda do que é cerco
fecha-se atrás das costas
e arrasta um deus pesado

quarta-feira, 2 de junho de 2010

FERREIRA GULLAR: POEMA

(Marcelo Grassmann)
APRENDIZADO

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.