sábado, 24 de abril de 2010

O POETA GUSTAVO FELICÍSSIMO

(Renoir)
GUSTAVO FELICÍSSIMO

É natural de Marília, interior de São Paulo, mas está radicado na Bahia desde 1993. Seus poemas aqui apresentados seguem o molde da Retranca, forma fixa criado pelo poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo e da qual Felicíssimo é um dos mais importantes cultores no momento.


Os meus poemas

Vão meus poemas, todos eles,
para os que são, mas não se encontram,
para os que avançam e se perdem,
para os que vivem e se matam;

mas que assim sendo permanecem
feito os frutos que não perecem;

neles não há nada de novo,
nenhuma trama ou relevância,
neles não há nada de novo:

em meus poemas vejo apenas
o bálsamo de auroras plenas.


Senda

Sou como o invisível céu
que não vos inspira cuidados,
pois retorno depois das névoas
sobre os campos abandonados;

sou finito e celebro o fogo
infindável do grande jogo

a nos enlaçar a garganta;
creio no vórtice da voz
sacrossanta que a tudo encanta;

trago os haveres desse mundo;
sou terra, sou campo fecundo.


Piano

Arrebata-me ao pôr-do-sol
o som de um piano distante;
sua canção, que desconheço,
trás magia por um instante;

entra pela porta e janela,
faz do aposento passarela

enquanto uma réstia de luz
cintila sobre o meu poema
que nesse momento transluz:

à folha toda iluminada
não cabe acrescentar mais nada.


Gustavo Felicíssimo é poeta e ensaísta, tendo diversos artigos publicados na imprensa brasileira e sites especializados em literatura, mas em livro permanece inédito. Fundou, juntamente com outros escritores, o tablóide literário SOPA, em Salvador, do qual foi seu editor. Organizou e fez publicar “Diálogos – Panorama da Nova Poesia Grapiúna”, uma mostra dos novos autores da região cacaueira da Bahia.
Graduando em Letras, UESC, atua como preparador de textos e revisor para editoras e poetas. Seu primeiro livro de poesia, “Revelação & Outros Poemas”, será lançado ainda neste ano. Venceu o Prêmio Bahia de Todas as Letras, edição 2009, em duas categorias, Poesia e Literatura de Cordel.
Edita o blog Sopa de Poesia, cujo endereço virtual é: http://www.sopadepoesia.blogspot.com/

APRESENTAÇÃO DO POETA JORGE ELIAS NETO POR GUSTAVO FELICÍSSIMO

Jorge Elias Neto

Capixaba, de Vitória, sua busca se inicia com a questão ontológica basilar: o sentido do ser. Sua obra poética é marcadamente filosófica, metafísica e existencialista, partindo da realidade vivida para a apreensão de um sentido maior, através da poesia.


A prazo

Levem-me as horas
para os caprichos mundanos!

Já destaquei a etiqueta.

Tomei posse do indivíduo.

Será que não vêem
no meu ante-braço
o carimbo de “pago”?


A dor do corte

Violei o túmulo de minha mãe antes da sua morte.
Dilapidei o que já eram escombros.

Cobrei dela as palavras
com que me lavava os cabelos.

A palavra “verdade” – por exemplo.


Sonho

Meus sonhos?

Destravar as portas que fechei
mesmo que eu não volte a vê-las.

Que as lâmpadas ao se acenderem
tenham um quê de pirilampo que deslumbre.

Que o impulso dos pés
me lancem para dentro da aurora.

Ver na frouxidão do limite
o desgaste de todos os dogmas.

Ter um fim licencioso
que me permita o grito.


Jorge Elias Neto também é médico, especialista em cardiologia. Publicou “Verdes Versos”, 2007. Em 07 de Maio, sexta-feira, lançará “Rascunhos do Absurdo” na Biblioteca Pública do Estado, em Vitória.

APRESENTAÇÃO DO POETA SILVÉRIO DUQUE POR GUSTAVO FELICÍSSIMO


SILVÉRIO DUQUE


A poesia de Silvério Duque é muito refinada, alquímica, tecida com engenho e arte, em que o poeta apresenta-nos uma alternância riquíssima de perspectivas e expressões dramáticas do contrário, bem diversa e não apenas catártica, resultando em um canto verdadeiro, uma unidade e uma realidade concreta. Trata-se de uma poesia muito superior ao que nos vem sendo apresentado pela maioria dos poetas contemporâneos.



Pr’ uma aquarela à Carlos Pena Filho


à Senhora Claudia Cordeiro, un souvenir...


Por que pintei de azul a nossa estrada?
Por não trazer um céu sobre os sapatos.
Então, busquei, em gestos insensatos,
despir, do azul, o Azul da madrugada.

Para exigir então o azul ausente,
que se espargiu em tuas alpargatas,
roubei de ti o azul das coisas gratas,
que, em teu olhar, nasceu tão simplesmente.

Mas, vestidos de azul, nem recordamos,
haver tantos azuis que azuis se amassem,
qual o Mar e o Céu, no azul, nos espelhamos...

E, perdidos no azul, nos contemplamos,
porque, do azul, as coisas sempre nascem,
pois, no morrer do azul, nós retornamos.



A pele de Esaú (Poema 04)


E o que eu adoro em ti é a tua carne,
porque tudo o que é vivo se deseja;
assim, desejo em ti o meu tormento
que há-de crescer na proporção do tempo.

O que eu almejo em ti é a tua sombra,
pois toda boca habita as mesmas vozes
que hão-de tecer com gritos o teu nome
na tarde azul tragada pela noite.

Beijo o teu rosto como se existisse
algum lugar pr’além do Precipício,
e, junto ao gosto de teu lábio esquivo,

uma palavra, sobrescrita em sangue,
há-de adornar o verso em que eu me esqueço
e há-de extirpar, do amor, a fúria imensa.



Soneto ao Vaqueiro

ao amigo e velho vaqueiro consangüíneo, Miguel Carneiro


Esquecidos, no vento, procuramos
por aquilo que outrora fomos – tanto
faz se a luz que nos guia agora é pranto,
se tudo se desfez... Nós perduramos.

Tudo torna a viver, e reencontramos
a força de existir, o próprio encanto
que transfigura o nosso grito em canto
oportuno, o caminho pr’onde vamos:

é a memória a deter a nossa sina
de ter, nos pés, os giros que há no mundo
e a vontade de amar que o Amor ensina,

porque a alma há de fazer sua própria sorte
ante o esplendor mais límpido e profundo
ou do anjo frio que nos trará a morte.


Silvério Duque é baiano de Feira de Santana. Licenciado em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana é professor e também músico, clarinetista. Tem publicado dois livros de poesia: “O crânio dos Peixes”, 2002; e “Baladas e outros aportes de viagem”, 2006. Neste mês de Maio, dia 06, lança “A Pele de Esaú” pela Via Litterarum em Feira de Santana, após em Salvador.

APRESENTAÇÃO DO POETA PILIGRA POR GUSTAVO FELICÍSSIMO


PILIGRA

Piligra é um poeta baiano da mais nova geração. Escreve em versos livres, haikais e sonetos alexandrinos onde se destaca fazendo no seu próprio estilo, o que fizeram antes Drummond e Vinicius, adaptando a linguagem coloquial do modernismo à forma fixa. Piligra faz uma poesia não apenas de forte sabor contemporâneo, como de grande saber poético.


Um Beija-flor

um beija-flor pousou na minha poesia
com sutileza como um anjo iluminado,
seu olhar divino me deixou impressionado
- doce metáfora de um verso à luz do dia...

o beija-flor ficou me olhando ali parado,
simples paisagem da mais pura fantasia,
seu olhar de flor brilhou com força e alegria
- jardim suspenso, no meu verso eternizado...

um beija-flor pousou seus pés de sutileza
na minha alma de poeta embrionário,
um filme lírico de amor e de beleza,
tela compondo, como um conto, o meu cenário...

- o beija-flor agora sonha que é um canário
e canta hinos pra alegrar minha tristeza!


Coração de poeta

meu coração, janela aberta para o nada,
bate sem ritmo sobre as pedras de outro ser;
desiludido segue aqui por outra estrada
fazendo versos pra poder sobreviver...

meu coração, letra sem vida e ignorada,
pulsa em silêncio no meu corpo de não-ser;
abandonado, feito criança abortada,
espera a morte com ternura e com prazer...

meu coração, deserto imenso e assustador,
guarda fantasmas disfarçados de alegria,
feito um demônio que (sorrindo de uma dor)
esconde a vida na beleza de uma orgia...

- meu coração, desejo louco de escritor,
pulsa tranquilo no papel sem poesia!



Concepção

Para Graciete, Bárbara e Elisandra

eu já concebo o verso assim metrificado
como arquiteto que planeja um edifício
na exatidão do prumo reto e equilibrado
sem perguntar se isto é fácil ou é difícil!

eu já concebo a rima assim – intercalada,
numa urdidura trabalhosa e singular –
puxando o fio de cada sílaba marcada
pelo tecido de uma métrica “sem par”!

eu já concebo o meu soneto alexandrino
(como a matriz de uma equação vetorial)
fazendo cálculo semântico e verbal,

com meu compasso atrapalhado de menino!
eu já concebo o meu poema ornamental
como operário que dá forma ao que é divino!


Piligra é o pseudônimo de Lourival Pereira Júnior. É nascido em Itabuna, Ba. Professor universitário, possui Mestrado em filosofia pela UFPB (Universidade Federal das Paraíba). Publicou “Fractais”, 1996 e participou de “Diálogos – Panorama da Nova Poesia Grapiúna”, 2009.

quarta-feira, 21 de abril de 2010





A URNA

Eu te amo como se ama
uma urna sagrada. Quando
o seu segredo se declara
maior que tudo, e ainda amor
é mais que o seu segredo cala.

Amo-te além de quando a dor
e a alegria se misturam
sob o silêncio que restaura,
ou quando diante de uma urna
sagrada, a dor é tudo e nada.

Amo-te ainda como se ama
o bem possível, este bem
que na vigília de existir
a humanidade toda espera:
eu te amo ao me definir.

Assim, ao te amar e ser livre,
renovo em meu amor as minhas
cinzas, que guardo na sagrada
urna – a que se ama – e amor
é mais que a luz da própria chama.


Poema de Weydson Barros Leal

domingo, 18 de abril de 2010

FRANCISCA JÚLIA: SONETO

(Jean François Millet)


À NOITE

Eis-me a pensar, enquanto a noite envolve a terra,
Olhos fitos no vácuo, a amiga pena em pouso,
Eis-me, pois a pensar... De antro em antro, de serra
Em serra, ecoa, longo, um réquiem doloroso.

No alto uma estrela triste as pálpebra descerra,
Lançando, noite dentro, o claro olhar piedoso.
A alma das sombras dorme; e pelos ares erra
Um mórbido langor de calma e de repouso...

Em noite assim, de repouso e de calma,
É que a alma vive e a dor exulta, ambas unidas,
A alma cheia de dor, a dor cheia de alma...

É que a alma se abandona ao sabor dos enganos,
Antegozando já quimeras pressentidas
Que mais tarde hão de vir com o decorrer dos anos.

sábado, 17 de abril de 2010

RAIMUNDO CORREIA: SONETO




MAL SECRETO

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;

Se se pudesse, o espírito que chora,
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!

Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!

Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

OLAVO BILAC: SONETO




NEL MEZZO DEL CAMIN

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

VICENTE DE CARVALHO: SONETO

(Caspar David Friedrich)


VELHO TEMA

Só a leve esperança em toda vida
disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
que uma grande esperança malograda

O eterno sonho da alma desterrada
sonho que traz ansiosa e embevecida,
é uma hora feliz, sempre adiada
e que não chega nunca em toda a vida

Essa felicidade que supomos,
árvore milagrosa que sonhamos
toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
porque está sempre apenas onde a pomos
e nunca a pomos onde nós estamos

quarta-feira, 14 de abril de 2010

ALBERTO DE OLIVEIRA: SONETO

(Caspar David Friedrich)


CHORO DE VAGAS

Não é de águas apenas e de ventos,
No rude som, formada a voz do Oceano.
Em seu clamor – ouço um clamor humano;
Em seu lamento – todos os lamentos.

São de náufragos mil estes acentos,
Estes gemidos, este aiar insano;
Agarrados a um mastro, ou tábua, ou pano,
Vejo-os varridos de tufões violentos;

Vejo-os na escuridão da noite, aflitos,
Bracejando, ou já mortos e debruços,
Largados das marés, em ermas plagas…

Ah! que são deles estes surdos gritos,
Este rumor de preces e soluços
E o choro de saudades destas vagas!

UM POEMA DE BERNARDO LINHARES

(Eduardo Fiel)


ALUMBRAMENTO

Todo bordado cor de rosa,
no fim da tarde de cetim
o sol se deita em seu jardim,
o mar que lambe cospe fogo.

E quando a lua acorda em sonho,
desmilinguindo-se de gozo,

volto os meus olhos para o céu.
De que importa a Ilha e o Porto?
Pra que olhar o mar vermelho?

Se no horizonte à minha frente
o que eu enxergo é a Mulher.

domingo, 11 de abril de 2010

HELENA FIGUEIREDO: A POESIA CONTEMPORÂNEA DE PORTUGAL



APELAÇÃO

Será ali, junto do rio,
que jorrará leite na quadratura de um tempo.

Os animais, enrodilhando a lisura da planície,
esperam afoitos atrás dos juncais.

É chegada a hora das danças,
dos rituais, entranhados nos genes,
desde a criação.

E a lei do mais forte, salta do sangue,
a pulsão animal agita fortemente
a clareza das águas.

Perpetuada a mensagem da velha arca,
"crescei e multiplicai-vos",
uma nuvem de pó, alaga o suor da retirada,
o trote dos vencidos, é já um eco,
batendo no vento,

até que de novo, soe o chamamento,
e os machos regressem, no rasto do cio.


CÓDIGO SECRETO

Terás que seguir os pássaros assustados,
o voo frio do sentido inverso.

O nome surgirá nos arabescos de um tronco,
no cerne de um poema,
no delírio que assola o branco das insónias.

Pronuncia-o devagar junto ao postigo,
e a porta abrir-se-á.

Renega o bastão,
a máscara,
todos os anéis.
.
Encontrarás a escuridão da mesa,
e nada mais.

Poisa aí o teu fardo,
e com o canivete, esventra o silêncio.

Ouvirás o crepitar da chama,
um aroma a vinho maduro,
indicando a direcção do corredor.
................

A PAREDE

A tarde escorria gélida,
aguardando o chamado das primeiras andorinhas.
Voltariam certamente,
para os velhos ninhos,
numa roda negra,
num derradeiro cântico, pregão de primavera.

Encostou-se à parede,
onde tantas vezes o sol batera, cru e férreo,
alongando de dor as sombras,
num movimento a tocar o céu.
.
(Um dia,
talvez assistisse ao desertar das aves,
à paragem súbita das fontes,
ao agonizar do grande carvalho,
à morte da luz.)

Sentiu um relâmpago atravessando os ossos,

e a parede atrás,
sumptuosamente altiva,
apoio das heras,
das roseiras,
das patas viscosas do lagarto,

foi o pano verde que lhe deu força,
a manteve de pé,

até o rebate dos sinos, ecoar na calçada.

sábado, 10 de abril de 2010

CRUZ E SOUSA: POEMA

(Caspar David Friedrich)


POST MORTEM

Quando do amor das Formas inefáveis
No teu sangue apagar-se a imensa chama,
Quando os brilhos estranhos e variáveis
Esmorecerem nos troféus da Fama.

Quando as níveas Estrelas invioláveis,
Doce velário que um luar derrama,
Nas clareias azuis ilimitáveis
Clamarem tudo o que teu Verso clama.

Já terás para os báratros descido,
Nos cilícios da Morte revestido,
Pés e faces e mãos e olhos gelados...

Mas os teus Sonhos e Visões e Poemas
Pelo alto ficarão de eras supremas
Nos relevos do Sol eternizados!

AUGUSTO DOS ANJOS: POEMA





A ÁRVORE DA SERRA

- As árvores, meu filho, não têm alma!
E esta árvore me serve de empecilho...
É preciso cortá-la, pois, meu filho,
Para que eu tenha uma velhice calma!

- Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
Deus pôs almas nos cedros... no junquilho...
Esta árvore, meu pai, possui minha’ alma!...

- Disse – e ajoelhou-se, numa rogativa:
“Não mate a árvore, pai, para que eu viva!”
E quando a árvore, olhando a pátria serra,

Caiu aos golpes do machado bronco,
O moço triste se abraçou com o tronco
E nunca mais se levantou da terra!

quarta-feira, 7 de abril de 2010

EMÍLIO MOURA: POEMA

(El Greco)


RENÚNCIA

Se eu cheguei a esta renúncia total, foi porque o meu sofrimento me transfigurou sem que eu o percebesse.
Aqui estou, tímido e humilde.
Parece que aqui estou há séculos.

Meus olhos já não compreendem outra realidade.

A realidade que amei dorme na sombra.

MAURO MOTA: POEMA

(Munch)


Elegia Nº1

Vejo-te morta. As brancas mãos pendentes.
Delas agora, sem querer, libertas
a alma dos gestos e, dos lábios quentes
ainda, as frases pensadas só em certas
tardes perdidas. Sob as entreabertas
pálpebras, sinto, em teu olhar presentes,
mundos de imagens que, às regiões desertas
da morte, levarás, que a morte sentes

fria diante de todos os apelos.
Vejo-te morta. Viva, a cabeleira,
teus cabelos voando! ah! teus cabelos!

Gesto de desespero e despedida,
para ficares de qualquer maneira
pelos fios castanhos presa à vida.

sábado, 3 de abril de 2010

ÁLVAREZ DE AZEVEDO: SONETO II

(Johann Heinrich Dannecker)


Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar! Na escuma fria
Pela maré das águas embalada...
- Era um anjo entre nuvens d’alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti – as noites eu velei chorando
Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo!

sexta-feira, 2 de abril de 2010

PROVÉRBIOS




A arrogância precede a ruína, e o espírito altivo, a queda.

Pr 16, 18

Há caminhos que parecem retos, mas afinal são caminhos para a morte.

Pr 16, 25

Coração alegre, corpo contente; espírito abatido, ossos secos.

Pr 17, 22

Quando entra a impiedade, entra a afronta, com o menosprezo, a vergonha.

Pr 18, 3

Antes da ruína, o coração se exalta, e antes da honra, a humilhação.

Pr 18, 12

Morte e vida estão em poder da língua, aqueles que a escolhem comerão do seu fruto.

Pr 18, 21

O home prudente é lento para a ira; e se honra em ignorar uma ofensa.

Pr 19, 11

Água profunda é o conselho no coração do homem, o homem inteligente tem apenas de hauri-la.

Pr 20, 5

Quem pode dizer: “Purifiquei meu coração, do meu pecado estou puro”?

Pr 20, 9

Olhar altivo, coração orgulhoso, a lâmpada dos ímpios, são o pecado.

Pr 21, 4

Fazer tesouros com a língua falsa é vaidade fugitiva de quem procura a morte.

Pr 21, 6

A alma do ímpio deseja o mal; aos seus olhos o próximo não encontra graça.

Pr 21, 10

O homem que se desvia do caminho da prudência, na assembléia das sombras repousará.

Pr 21, 16

Quem guarda a boca e a língua guarda-se da angústia.

Pr 21, 23

Como a neve no verão e a chuva na colheita, também a honra não convém ao insensato.

Pr 26, 1

Relho para o cavalo, freio para o jumento, e a vara para as costas dos insensatos.

Pr 26, 3

Com o cão que torna ao seu vômito é o insensato que repete a sua idiotice.

Pr 26, 11

Prata não purificada aplicada sobre argila; são os lábios ardentes e o coração perverso.

Pr 26, 23

Como a água dá o reflexo do rosto, assim é o coração do homem para o homem.

Pr 27, 19

LA ROCHEFOUCAULD: MÁXIMAS

(Kandinsky)


29

O mal que praticamos não atrai tanta perseguição e ódio quanto nossas boas qualidades.

33

O orgulho sempre se indeniza e nunca perde, mesmo quando renuncia à vaidade.

38

Propomos de acordo com nossas esperanças, mas cumprimos de acordo com nossos temores.

40

O interesse, que a uns cega, é a luz de outros.

42

Não temos força o bastante para seguir toda a nossa razão.

48

A felicidade está no gosto, não nas coisas; é por ter o que amamos que somos felizes, não por ter o que os outros acham amável.

49

Não somos nunca tão felizes nem tão infelizes quanto imaginamos.

51

Nada pode diminuir mais a satisfação de si que ver que reprovamos hoje o que ontem aprovávamos.

55

O ódio aos favorecidos não é mais que amor ao favorecimento. O despeito de não possuir se consola e abranda com o desprezo pelos que os possuem, e recusamos render-lhes nossas homenagens sem poder tirar-lhes as que o mundo lhes faz.

64

Não faz a verdade tanto bem ao mundo quanto lhe fazem mal suas aparências.

67

A graça está para o corpo assim como o bom-senso está para o espírito.


Máximas e reflexões. Ed. Imago

Tradução: Leda Tenório da Motta

quinta-feira, 1 de abril de 2010

ÁLVARES DE AZEVEDO: SONETO

(Turner)


Já da morte o palor me cobre o rosto,
Nos lábios meus o alento desfalece,
Surda agonia o coração fenece,
E devora meu ser mortal desgosto!

Do leito embalde no macio encosto
Tento o sono reter!... já esmorece
O corpo exausto que o repouso esquece...
Eis o estado em que a mágoa me tem posto!

O adeus, o teu adeus, minha saudade,
Fazem que insano do viver me prive
E tenha os olhos meus na escuridade,

Dá-me a esperança com que o ser mantive!
Volve ao amante os olhos por piedade,
Olhos por quem viveu quem já não vive!


Lira dos vinte anos. Ed. Paulus