domingo, 28 de fevereiro de 2010

POEMA

(Turner)




NO ÚLTIMO JULGAMENTO

Somente o amor e suas consolações. A minúcia das horas, o amparo dos dias. Em cada gesto, tributo ao tempo. Mãos que se unem em presença vivida. Lívido, incólume o olhar sobre o definitivo. As insinuações de outrora rememoradas em resignação, os equívocos destituídos de significação. No último julgamento não se prescinde da culpa. Uma rosa fenece sobre o estio. Para a consumação de todas as esperanças.

UM SONETO DE CRUZ E SOUSA

(El Greco)



TORTURA ETERNA

Impotência cruel, ó vã tortura!
Ó Força inútil, ansiedade humana!
Ó círculos dantescos da loucura!
Ó luta, ó luta secular, insana!

Que tu não possas, Alma soberana,
Perpetuamente refulgir na Altura,
Na Aleluia da Luz, na clara Hosana
Do Sol, cantar, imortalmente pura.

Que tu não possas, Sentimento ardente,
Viver, vibrar nos brilhos do ar fremente,
Por entre as chamas, os clarões supernos.

Ó Sons intraduzíveis, Formas, Cores!...
Ah! que eu não possa eternizar as dores
Nos bronzes e nos mármores eternos!


Missal, Broqueis. Ed. Martins Fontes

sábado, 27 de fevereiro de 2010

MÁXIMAS OU AFORISMOS II

(Kandinsky)



Amamos pouco quando satisfazemos nossos desejos, pois o amor não reside na posse e sim no desprendimento.

Amamos quando outorgamos ao outro o direito de ser si mesmo; portanto, de não ser apropriado.

Todo objeto de desejo é uma reclusão ao amor.

A insuficiência do homem advém do fato de que ele morre e de que nada pode ser feito ou remediado por aqueles que permanecem vivos.

Não raro, na iminência da morte consentimos em viver.

Se a morte possui uma dimensão trágica, essa reside no encerramento definitivo de todos os fatos, pois a vida não tolera dimensões definitivas.

As desgraças alheias pouco ou nada significam, visto estarem distantes do campo restrito de nossos sentimentos. Assim, o egoísmo impede que sejamos demasiado humanos.

A relevância de nossos problemas advém da percepção vaidosa dos mesmos.

Seríamos trágicos se tivéssemos a consciência de todos os fatos.

Um ideal de vida nem sempre corresponde às circunstâncias que o determina. O que explica a infelicidade de muitos.

Nunca amamos o suficiente para não precisarmos odiar.

Para além das verdades históricas encontra-se o homem.

É duvidoso crer no destino quando ele se torna um fardo ao fato de existirmos.

Duvidamos de nossas verdades quando elas não resultam em consolo às nossas desilusões.

A consciência do incerto é o resultado da razão em seu excesso de lucidez. Assim, as incertezas da vida não pertencem ao cotidiano.

Obs: aforimos de minha autoria protegidos por direitos autorais.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

POEMA

(Turner)



O IRREMEDIÁVEL

Porque agora atravessamos o horizonte fixo do silêncio. Como outrora a luz ilumina a esperança de certezas rudimentares. Cálido é o amor, simples como a água dos cântaros. Saciamos a sede do afeto remido. Do amparo exímio. Isentos da solidão sedimentada, da graça exclusa, de alguma forma antecipamos a recompensa de ser. A lucidez de persistir ante o irremediável, de acreditar ante a perda do que nunca possuímos derradeiramente. Caminhamos sobre o infinito de nossos passos.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

UM POEMA DE WEYDSON BARROS LEAL

(Enrico Bianco)



HISTÓRIA

Arde nos santos a certeza da Terra.

Sob a lua, a mesma lua, o chão. Aqui depositaram as lâminas.

Acre e suspensa sua imagem só – luz e solidão – onde não cabe o silêncio mais que a noite criada.

Longe das luzes a passagem dos carros evoca um futuro: é preciso manter os castelos, a história das casas – portas e janelas: – Outros meios compõem a próxima arquitetura.

Sinto o calor com seus beijos úmidos. Sua boca de água e fogueira.

A cidade guarda nas cinzas o sono das estrelas: sombras e réstias – palavras de minha infância.

Entre o céu e a curvatura da noite há pombas de pedra carregando cristais; –

e brilham seus pés sob a chuva branca.


Os ritmos do fogo, Ed. Topbooks

MÁXIMAS OU AFORISMOS

(Magritte)



Nossas misérias tornam-se sempre pequenas quando delas retiramos o acréscimo de nosso egoísmo.

Na morte tudo nos remete à vida.

Morte: insulto predatório ao encalço dos homens.

Poucos são capazes de admitir a pequenez que os caracteriza. Muitos são aqueles que acreditam na ilusão de sua grandeza.

As virtudes não excluem os vícios, elas podem tanto rechaçá-los como realçá-los.

A verdade nos aflige quando a mentira reivindica o direito de ser justa.

Não raro, a falta de amor próprio tem como conseqüência a lisonja.

No amor elevamos e rebaixamos o que desejamos.

Para aqueles que foram felizes há um momento em que a morte se faz necessária.

Não saberemos do amor a sua verdade. Somente a sua condição: amar.

As contradições da vida não justificam os equívocos de quem vive.

O que louvamos nos outros são as prerrogativas de nossas mentiras.

Pelo desprezo também perdoamos.

A verdadeira amizade é aquela que não negligencia os limites da sinceridade.

Com o consentimento dos outros aceitamos nossas mentiras sem ferirmos nossa moralidade.

Porque amamos acreditamos ser amados.

Como cadáveres não sepultados a clamarem por enterro de alguma forma nossos erros nos acompanham.

Podemos ser impiedosos quando pautamos nossos desejos na indiferença de suas conseqüências.

Um sonho torna-se realidade tão logo passamos a acreditar na possibilidade de sua realização. O mesmo ocorre com o pesadelo.

De alguma forma somos punidos por nossos antepassados.

A deturpação da ordem natural é sempre uma irreverência para aqueles que fazem da mentira um modelo de vida.

A incapacidade de se decidir pela verdade não é senão a falência do ser humano em face do mal.

Se pudéssemos mudar o passado certamente nos tornaríamos escravos de todos os equívocos.
Obs: aforismos de minha autoria protegidos por direitos autorais.

ROLAND BARTHES: A MÁXIMA

(Malevich)



A máxima é um objeto duro, luzidio – e frágil – como o corselete de um inseto; como o inseto também, possui o ferrão, o gancho de palavras agudas que terminam, a coroam – a fecham ao mesmo tempo que a armam (ela é armada porque é fechada). De que é feita essa estrutura? De alguns elementos estáveis, perfeitamente independentes da gramática, unidos por uma relação fixa que, tampouco esta, nada deve à sintaxe. Não somente a máxima é uma proposição cortada do discurso, mas, no interior dessa mesma proposição, reina ainda um descontínuo mais sutil; uma frase normal, uma frase falada tende sempre a fundir as suas partes umas nas outras, a equalizar o fluxo do pensamento; ela progride em suma segundo um devir aparentemente desorganizado; na máxima é tudo ao contrário; a máxima é um bloco geral composto de blocos particulares; a ossatura – e os ossos são coisas duras – é mais do que aparente: espetacular. Toda a estrutura da máxima é visível, na medida mesma em que é errática.

Roland Barthes, O grau zero da escrita. Ed. Martins Fontes

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

O ROMANCE CATÓLICO: LÚCIO CARDOSO - CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA II

(Bosch)



Sem pressa, com a mesma timidez de quem desobedece ditames de uma lei oculta, inclinei-me e levantei a ponta do lençol. Foi a primeira vez que vi o rosto de um cadáver, e aquilo deu-me uma sensação estranha como se uma música longínqua, em acordes muito finos, vibrasse em meu espírito. Ah, seria impossível expressão humana modificar-se com maior rapidez: nela, de linhas tão suaves e perfeitas, tudo havia sido vincado com violência, desde os cílios alongados, um tanto excessivamente, até a testa branca, larga demais, e a curva acentuada das asas do nariz, positivando um aspecto inesperado de semita. E em torno desse rosto, a rigidez estabelecera uma aura intransponível. Bem se via que a morte não era uma brincadeira, que o ser estabelecido originalmente, e toscamente modelado em barro pelas mãos de Deus, ali irrompia de todos os disfarces, para se instalar onipotente em sua essência mais verídica. Bem se via também que tudo se achava definitivamente dito entre nós. Inúteis as palavras que haviam sobrado, os afagos que não haviam sido feitos, as flores com que ainda pudéssemos adorná-la. Libertada, repousava em sua pureza final. Ah, e inútil também tudo o que não fosse fúria e submissão. Sem resposta, como se nós, criaturas, nada mais merecêssemos senão o luto e a injustiça, tudo terminava ali. E o que existira não passara de um sonho, de uma magnífica e passageira ilusão dos meus sentidos. Nada conseguiria mais romper o duro peso que se acumulava sobre meu coração, e diante daquela ruína, já tocada pela corrupção, eu custava a reconhecer aquela que fora o objeto do meu amor, e nenhuma lágrima, nem mesmo de piedade, subia-me aos olhos.
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Morremos quase sempre da crueldade ignorada dos seres que nos cercam.
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Quem somos nós que assim passamos como espuma, e nada deixamos do que construímos, senão um punhado de cinza e de sombra? Debato-me, o coração me vem aos lábios: que é valido, que é invulnerável à fúria do tempo, qual o sentimento que não se esgota e não se ultraja?

Crônica da casa assassinada. Ed. Civilização Brasileira

GUSTAVO CORÇÃO: LIÇÕES DE ABISMO III

(Edward Hopper)
A conclusão que tiro é que a vida e a morte são heterogêneas, e que a vida não se pode tornar como um objeto de arte, música ou poema, como insinua o filósofo que diz que o homem é uma existência para a morte. Se a nossa vida fosse um poema, a morte seria o termo. Se fosse dança, o último passo do exausto dançarino mereceria o aplauso das galerias angélicas. Se alguma coisa tende impetuosamente para um termo é a arte. O poeta não é somente aquele que morreria se não escrevesse, como ensina Rilke; é antes aquele que deseja acabar, que deseja morrer com seu poema, dar tudo, dar-se todo, afundar com seu navio fantasma. Digo do poeta o que Rilke dizia do homem em geral: c’est quelq’un qui s’en va, alguém que se despede, que se despede em cada todo que realiza, inteiro e completo como um ovo mágico. Na poesia, sim, a idéia de termo e de morte se casam. Cada poesia é uma boa morte. Um testamento novo. Uma vitoriosa agonia.
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Tentemos outras direções. A vida não é um poema; não tem a inteireza de um bailado; não se completa como a música. Mas será, quem sabe? uma coleção descontínua de momentos, com intervalos mais ou menos prolongados e mais ou menos insípidos. O conjunto será confuso, como as obras completas de um autor que tenha andado por caminhos diversos; mas os pedaços, os volumes, serão compreensíveis e razoáveis. Vem a morte e deixa um resto, como em gaveta de laborioso escritor que não teve tempo de rasgar seus abortos. Mas o que ficou, ficou.

Lições de abismo. Ed. Agir

JULIEN GREEN: ADRIENNE MESURAT II

(El Greco)

Adrienne assistia a esses concertos há tanto tempo que já não sentia nenhum prazer especial. Tinha bom ouvido, o bastante para saber que os músicos eram medíocres, que nem sempre observavam o ritmo e que a qualidade dos instrumentos não fazia justiça ao virtuosismo dos compositores. Nesse dia, porém, desde os primeiros acordes sentiu uma estranha emoção. Sem dúvida os últimos acontecimentos de sua vida a tinham deixado mais sensível. Ouviu uma longa frase musical que se elevava lenta e preguiçosamente e, de súbito, passava a um ritmo cada vez mais acelerado. Sentiu-se atingida por uma voz que se dirigia a ela, numa linguagem que compreendia, e entre seu espírito e a orquestra estabeleceu-se essa comunicação misteriosa, essa espécie de diálogo secreto que é o mais poderoso encanto da música e que explica a sua influência sobre o coração humano. Adrienne escutava. Toda a alegria e toda a tristeza que se sucediam nos temas musicais, comunicando-se entre si, cortavam-lhe o coração e, ao mesmo tempo, traziam-lhe aos olhos lágrimas de prazer. Reconhecia-se nos ritmos diversos que eram como as batidas do seu coração. Lembrava-se da dor, da solidão e, na estrada nacional, do riso mais triste do que um soluço. Teve uma sensação de abafamento. Era como se num minuto estivesse revivendo todo o sofrimento dos últimos meses e a dor, expressa numa voz que não era a sua, parecia mais viva e mais real. Pela primeira vez ouvia a história da sua infelicidade e ela lhe pareceu apavorante. Talvez tivesse se habituado ao sofrimento, como a uma ferida incurável, e a música explicava tudo, todas as razões pelas quais devia continuar suportando.

Adrienne Mesurat. Ed. Novo Século

MARCIAL: EPIGRAMAS

(Antônio Canova)


34

Sem guardas, Lésbia, e sempre de portas abertas, tu fornicas e não ocultas as tuas escapadelas e deleita-te mais o voyeur do que o amante; não te dão gozo os prazeres se alguma coisa escondem. Uma prostituta afasta os curiosos com a cortina e a chave, e poucas fendas se vêem no bordel de Submémio. Ao menos aprende com o pudor de Quíone ou de Ias: até estas putas reles se ocultam nos túmulos. Acaso dura de mais te parece esta censura? Proíbo-te de seres surpreendida, Lésbia, não de seres fodida.

84

Quirinal não acha necessário ter esposa, embora queira ter filhos; e encontrou a forma de resolver o problema: fode as escravas enche a mansão e os campos de servos cavaleiros em casa nascidos. Quirinal é um verdadeiro pater familiae.

3

Sexto, não deves nada a ninguém, não deves nada , Sexto, confesso: só deve de verdade quem pode pagar, Sexto.

47

Foge, te aconselho, das arteiras redes de uma afamada adúltera, oh! tu, mais delicado, Galo, que as conchas de Citera. Confias nas nádegas? O marido não gosta de ir ao cu. Só faz duas coisas: dá-o a chupar ou fode.

54

Que suspeitas, Lino, tem de ti a tua mulher e em que parte ela te quer mais casto, com indícios bastante claros o provou, ao dar-te, por guarda, um castrado. Nada mais sagaz do que ela, nem mais malicioso.

56

Entre as gentes da Líbia, a tua mulher, Galo, tem má fama, devido à feia acusação de avareza desmedida. Mas é pura mentira o que se conta: ela não costuma receber tudo. Que costuma então? Dar tudo.

61

Quando as tuas faces floresciam de incerta penugem, a tua perversa língua lambia os homens mesmo a meio. Depois que a tua sinistra cabeça a repugnância dos cangalheiros e a aversão dos infelizes carrascos passou a merecer, usas de outro modo a boca e, tomado de desenfreada inveja, injurias todo o nome que te vem à cabeça. Agarre-se antes ao baixo-ventre tão malfazeja língua: é que, quando chupava, era mais pura.

32

Se posso fazer amor com uma velha – é tua pergunta, Matrínia. Até com uma velha eu posso, mas tu és uma defunta, não uma velha. Posso com Hécuba, posso com Níobe, ó Matrínia, desde que um ainda não seja uma cadela, desde que a outra ainda não seja uma pedra.

Tradução: Delfim Ferreira Leão, José Luís Brandão e Paulo Sérgio Ferreira.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

MINÚCIAS

(Miró)
I

O chafariz
envelhecido
outrora reluzente.
Espólios
do tempo.

II

Espalhadas
ao redor
do jardim,
as amoras.
Tênue
tapete
carmesim.

III

O poço d’ água
entre o canteiro
de hortaliças.
Tivemos sede
e bebemos.

IV

Sobre as telhas
da dispensa
galhos apodrecidos.
Prelúdio
da existência.

UM POEMA DE WILLIAM CARLOS WILLIAMS

(Kandinsky)

SONG

beauty is a shell
from the sea
where she rules triumphant
till love has had its way with her
scallops and
lion´s paws
sculptures to the
tune of retreating waves

undying accents
repeated till
the ear and the ey lie
down together in the same bed
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CANÇÃO

beleza é uma concha
do mar
onde ela reina triunfante
até o que o amor a encontre

vieiras e
patas de leão
esculturas para o
tom de recuadas ondas

acentos eternos
repetidos até
que o ouvido e o olho deitem
juntos na mesma cama

Tradução: Virna Teixeira

UM POEMA DE PAUL ÉLUARD

(Paul Klee)
Revenir dans une ville de velours et de porcelaine, les fenêtres seront des vases où les fleurs, qui auront quitté la terre, montreront la lumière telle qu’elle est.

Voir le silence, lui donner un baiser sur les lèvres et les toits de la ville seront de beaux oiseaux mélancoliques, aux ailes décharnées.

Ne plus aimer que la douceur et l’immobilité à l’ceil de plâtre, au front de nacre, à l’ceil absent, au front vivant, aux mains qui, sans se fermer, gardent tout sur leurs balances, les plus justes du monde, invariables, toujours exactes.

Le coeur de l’homme ne rougira plus, il ne se perdra plus, je reviens de moi-même, de toute éternité.
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Retornar a uma cidade de veludo e porcelana, as janelas serão dos vasos onde as flores, que terão deixado a terra, mostrarão a luz tal como ela é.

Ver o silêncio, beijar-lhe os lábios e os telhados da cidade serão dos belos pássaros melancólicos, de asas descarnadas.

Amar apenas a doçura e a imobilidade no olho de gesso, na fronte de nácar, no olho ausente, na fronte viva, nas mãos as quais, sem se fechar, guardam tudo sobre suas balanças, os mais justos do mundo, invariáveis, sempre exatos.

O coração do homem não ruborizará mais, não se perderá mais, eu volto de mim mesmo, de toda a eternidade.

Tradução: Virna Teixeira

domingo, 7 de fevereiro de 2010

POEMA

(El Greco)
CHAGAS

Simples
o olhar da moça no elevador.
A espera de resoluções cotidianas.
O silêncio
da ausência humana.

– Porque amas a verdade
aceitarás a injúria

amarás o próximo e tua solidão
como as chagas da redenção


UM POEMA DE MURILO MENDES

(El Greco)
O RITO HUMANO

Pelas curvas da tarde vem surgindo
A inefável palavra Agnus Dei.
Ouço balidos pelo mundo inteiro:
Matam o cordeiro branco redentor.

As armas do futuro desenhadas
Vejo no espaço, túmulos abertos:
Os balidos rebentam das gargantas
Até dos que inda estão para nascer.

De variadas maneiras matam o homem.
Matam a pureza, a paz, a liberdade,
Pelo cutelo, a bomba, a guilhotina,

Pelo silêncio, a fome, a solidão.
Fecha o leque de plumas o Oriente,
Abre o Ocidente o tanque de terror.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

O ROMANCE CATÓLICO: LÚCIO CARDOSO - CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA

(Van Gogh)

Que é o para sempre senão o existir contínuo e líquido de tudo aquilo que é liberto da contingência, que se transforma, evolui e deságua sem cessar em praias de sensações também mutáveis? Inútil esconder: o para sempre ali se achava diante dos meus olhos. Um minuto ainda, apenas um minuto – e também este escorregaria longe do meu esforço para captá-lo, enquanto eu mesmo, também para sempre, escorreria e passaria – e comigo, como uma carga de detritos sem sentido e sem chama, também escoaria para sempre meu amor, meu tormento e até mesmo minha própria fidelidade. Sim, que é o para sempre senão a última imagem deste mundo – não exclusivamente deste, mas de qualquer mundo que se enovele numa arquitetura de sonho e de permanência – a figuração de nossos jogos e prazeres, de nossos achaques e medos, de nossos amores e de nossas traições – a força enfim que modela não esse que somos diariamente, mas o possível, o constantemente inatingido, que perseguimos como se acompanha o rastro de um amor que não se consegue, e que afinal é apenas a lembrança de um bem perdido – quando? – num lugar que ignoramos, mas cuja perda nos punge, e nos arrebata, totais, a esse nada ou a esse tudo inflamado, injusto ou justo, onde para sempre nos confundimos ao geral, ao absoluto, ao perfeito de que tanto carecemos.

Crônica da casa assassinada. Ed. Civilização Brasileira

O ROMANCE CATÓLICO: JULIEN GREEN - ADRIENNE MESURAT

(Edward Hopper)
Ninguém jamais lhe dissera que era bela, mas Adrienne sabia. E revia agora uma noite, na semana passada, quando estava sozinha no quarto, atormentada por uma crise de melancolia, das que a acometiam muitas vezes sem motivo aparente. Estava sentada na frente da penteadeira e, com os braços sobre o mármore, olhava-se ao espelho à luz do lampião. O cabelo negro emoldurava o rosto e tocava os ombros, emprestando à sua imagem algo de majestoso e triste. No entanto, os olhos brilhavam e o sangue circulava rápido sob a pele. Olhava longamente, admirando os traços perfeitos que o espelho refletia; as sobrancelhas retas e voluntariosas, as pupilas azuis e os lábios cheios, mas severos. A seriedade da expressão a surpreendeu; tentou sorrir, mas essa alegria forçada fez com que fechasse os olhos, como se tivesse visto algo terrível. Abriu-os depois de alguns segundos, sacudiu a cabeça para a figura amargurada do espelho e, curvada de súbito ao peso de um desespero mudo, deixou cair a cabeça sobre o mármore, os cabelos espalhando-se sobre escovas, frascos e pequenas caixas.
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Após algumas horas, acordou tão subitamente quanto havia dormido. Olhou em volta, mas a escuridão era completa e não conseguia nem ver o travesseiro branco. Lembrou-se então de uma poesia aprendida há muito tempo e as palavras lhe vieram aos lábios. Murmurou:

Foi durante o horror de uma noite profunda.

Jamais pensara no sentido dessas palavras e, agora que a lembrança as trazia do passado, pareciam-lhe revestidas de uma beleza poderosa e terrível. E Adrienne sentiu medo. Há realmente, nas primeiras horas de obscuridade, algo de calmo e seguro, mas, à medida que a noite avança e que todos os ruídos da terra se calam, a sombra e o silêncio adquirem um aspecto diferente. Pesa sobre tudo uma imobilidade sobrenatural, e nada descreve tão bem os momentos que antecedem a aurora como a palavra horror.

Adrienne Mesurat. Ed. Novo Século

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

DOIS POEMAS DE NYDIA BONETTI

(Miró)

CHUVAS ANTIGAS

o dia de repente desbota. o vento sopra poeiras antigas - gravetos, painas, folhas e flores de dente de leão. na casa em frente, lampiões seculares se agitam. enlouquecem os pássaros, cães se escondem, árvores alteradas dançam num balé convulsivo. mulher puxa depressa os meninos pra dentro, arranca a roupa do varal, fecha correndo portas e janelas, acende velas, prepara a palma benta pra queimar: a chuva vai chegar.

DESARVORADA

árvore antiga
não quer saber do tempo
nem dos setembros
árvore louca
rompendo as asperezas
explode em flores

GUSTAVO CORÇÃO: LIÇÕES DE ABISMO II

(Ismael Nery)


O mundo é um anárquico depósito, uma loja monumental onde a gente compra estrelas e flores para a festa silenciosa e recatada no recesso da alma. Não é assim que fazem os escultores, quando arrancam o barro do chão e o trazem para o encontro do amor? Não é assim, por exclusão, por ablação, que o poeta destaca o que quer do anônimo e bulhento reservatório comum? O importante, na poesia e na vida, é a escolha; e por conseguinte a recusa. A poesia é uma greve, um protesto, como o que fazem os límpidos cristais, com suas intolerantes arestas, no seio opressivo da montanha. Ninguém rejeita tanto como o poeta, e como o apaixonado.
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Curioso é esse contraste: a morte é o que há de mais certo, a ponto de servir no modelo clássico de silogismo; e é por outro lado a ideia que mais nos custa admitir, e tanto mais custa quanto mais perto nos toca. É uma certeza que anda ao contrário das outras.

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Há pessoas que falam quase sempre de um modo caloroso, com indignação fácil e cólera pronta. A qualquer injustiça cerram os punhos e desatam a generosa paixão dos sanguíneos. Gosto de vê-los; mas em geral fico alheio ao tom maior de suas indignações. A mim o que mais fere, o que mais dói sãos os equívocos que vejo no mundo. Essa é minha triste dominante: uma exasperação do senso do ridículo. E só quem já viveu essa experiência é capaz de avaliar a dor aguda, penetrante, glacial, que permanentemente me faz companhia. Falam de um inferno de fogo; eu penso, às vezes, num inferno de gelo.

Lições de Abismo. Ed. Agir

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

CLAUDIO DANIEL: POEMA LETRA NEGRA

(Paul Klee)

“Sou apenas fragmento, enigma e pavoroso acaso”.
Fernando Pessoa

I

escuto escuro – sombras surdas –
no espaço espesso
lodo torvo
de um tempo esquivo
em que começo e recomeço
o pugilato
comigo mesmo
luta ou luto
que me cega e segue
como treva ou trava
ao vento curvo.

II

verde é o segredo
verde é o silêncio

escrito em cicatriz
escrito em anti-flor-de-lis

– para a necessária
abolição de mim –

III

estou morto e não-morto
vértebras ao inverso
letras tontas
de um nome incerto
vocábulo equívoco
desfeito em água
– para a necessária
abolição de mim –
escuto espesso – sombras mudas –
no escuro escuro.

IV

nada me aquieta
entre espectros
de palavras-coisas:

anêmonas trafegam
pensamentos rotos,
roídos até o muco

– eis a era desolada
de cortes e recortes
tempo-cutelo
no espaço lacerado
pele-de-lua violada
por línguas-gárgulas

lua-esfinge-macerada
por caninos cérberos:
tempo nigromante

– corvo corvo corvo
recrocitando escárnios.

V

“quando nada mais faz sentido” –
busco o mistério animal,
a ferocidade da noite:
deslizando por meus lábios,
ela se transforma, revoluta,
desentranhada, não me decifra,
não te devoro, abisma fábulas
na desordem dos cabelos;
entre pupilas, expandindo luas,
tensionando a pele, na cegueira dos mamilos.

VI

floresta de enganos, se me esmagam,
furiosos, com simulações,
é tua face que me escapa à pele;
se atravesso veredas infernais,
desalentado, paisagem de fraturas,
é apenas para encontrar-te,
tua imagem reversa é o meu labirinto.

VII

espaço vegetal, tempo lagarto:
mãos fluidas; voz movediça;
olhos de musgo, na pedra;
quem sou eu, nessa era líquida,
menos homem que número,
letra negra, fragmento do caos,
movendo-me à roda de teu nome?

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O ROMANCE CATÓLICO: GUSTAVO CORÇÃO LIÇÕES DE ABISMO


Contam que Rilke, depois dos primeiros versos que o vento lhe ditou nas altas penedias de Duíno, viveu doze anos com aquele germe, em viagens, em mudanças, em desperdícios, em guerras, até o momento de realizar, em quatro dias, como quem morre, as suas elegias perfeitas. Não será sempre assim? Não será a própria vida uma longa e desarrumada atividade dos bastidores para uma fugaz apoteose?
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Este é o ponto de suprema importância: a harmonia, a composição exata, o contraponto das horas, que agora se tornou possível.

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Lá estão nos armários os dorsos imóveis das dez mil testemunhas que ouvi. Que me dissestes vós, ó gregos? Que me contastes vós, ó homens inquietos de meu tempo? Corro os olhos: lá vejo um título que me traz à memória uma análise austera, com cifras, com neologismos, leis, teoremas, colorários, para me provar que o homem vive de pão; acolá, duma lombada com letras de ouro, sai uma voz a dizer-me que não só do pão vive o homem. Economistas, profetas, historiadores, filósofos que continuam a dizer que viram mais longe, porque subiram em ombros de gigante, e filósofos que se obstinam em dizer que mais longe chegaram porque das bagagens antigas se alijaram; humoristas que choram escondidos, poetas que escondidos se riem; hagiógrafos, exegetas, hermeneutas, psicólogos, ensaístas; vozes pausadas, vozes ardentes, vozes minuciosas, vozes entrecortadas; quem de vós, quem se eu gritar me responderá, ó aprendizes angélicos!?

Lições de abismo. Ed. Agir