quinta-feira, 23 de julho de 2009

POETA IACYR ANDERSON FREITAS


"O que escrevemos

como lembrança

nos escreve".
Entrevista com o poeta Iacyr Anderson Freitas




1) – Como ocorreu seu contato inicial com a poesia?

R – Meu contato inicial com o gênero lírico se deu na adolescência, quando conheci uma pequena coletânea poética do Manuel Bandeira. Até então, minhas leituras se concentravam especificamente na prosa de Machado de Assis, de José de Alencar e de alguns escritores brasileiros que publicaram suas primeiras obras nas décadas de 20 e 30 do século passado. Ao ler Bandeira, no entanto, me senti transportado. Comecei, então, a me dedicar também aos livros de poesia. Autores como Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima, João Cabral, Mário Quintana, Cecília Meireles, Ferreira Gullar, entre outros, logo passaram a dominar o ambiente de minhas leituras juvenis.


2) – Como é seu procedimento ao escrever um poema?

R – Não tenho um método ou um procedimento específico. Como o exercício da alteridade está na raiz do fazer literário, procuro mergulhar nos temas, nas personagens, nas situações e nos ambientes focalizados pelo texto. Geralmente, depois que termino de escrever um determinado poema, deixo-o “decantar” na gaveta por uns dois anos, no mínimo. Só após esse período de afastamento, aliás, consigo ler, com olhos críticos, o que meus embates com a linguagem produziram. Então, outro embate principia: o intrincado processo de revisão, que costuma condenar muitos textos à lixeira. De forma geral, todas as linguagens me movem e me despertam para a poesia. Escrevo a partir de uma tela, de um filme, de um livro de contos ou de ensaios, de uma fotografia, de um romance, de uma música ou de algum outro poema. Escrevo também a partir de um diálogo que ouvi, de relance, na rua ou no ônibus, de um gesto ou de uma troca rápida de olhares, de um resto de frase, assim pela metade, ou mesmo de uma lembrança qualquer. Escrevo sempre a partir do que me vive ou do que me ensina a viver.


3) – O que é poesia para Iacyr Anderson Freitas?

R – Tudo o que é absolutamente humano, na sua essência múltipla e vertiginosa, transcende as definições. Logo, um poema pode ser um modo de expressar o mundo, de colocá-lo dentro dos limites e dos vazios da linguagem, pode ser uma forma de indagar a nossa existência, enfim, pode ser um Proteu alucinado, capaz de negar continuamente o nosso inútil exercício de fixá-lo em qualquer teia de definições. Para quem se aventura no universo poético, na verdade, a linguagem representa um limite, uma forma alucinada de restringir o mundo que nos cerca. Buscando captar os múltiplos meandros deste mundo, a poesia estará, de certa forma, abrindo seu universo para o indizível que assombra a condição humana. Não obstante, por outro lado, a linguagem representa também a maior aquisição intelectual do homem – e todo poeta se sente tocado pelo horizonte acústico e afetivo das palavras, pelo rigor das relações de sentido que sustentam nossas falas cotidianas. Além disso, é no campo de batalha das palavras que o poema se estabelece. Tendo em vista a quantidade de ambivalências, não vejo como alguém possa, felizmente, definir esse turbilhão chamado poesia. Quando estou lecionando, costumo brincar a respeito do assunto: “tragam-me uma definição de poesia e eu lhes trarei uma poesia capaz de negar essa definição”.


4) – Como você vê o atual panorama da poesia brasileira contemporânea? Quais poetas você destacaria?

R - Há muitos poetas de qualidade atualmente no Brasil, e em plena fase produtiva. A maioria, infelizmente, por conta dos nossos problemas habituais, imersa no mais completo abandono editorial, condenados ao anonimato. Por isso fica difícil, aliás, destacar alguns nomes sem cometer graves omissões. Por outro lado, há também uma parcela de poetas que, embora encontre divulgação e visibilidade nos segundos cadernos da vida, ainda não construiu obras de qualidade – e não me parecem, à distância, comprometidos com tal idéia. Esse é um fenômeno comum, já histórico em nossos tristes trópicos. Não obstante, talvez agora a situação esteja mais grave, talvez os obstáculos sejam maiores, pois a quantidade de “poetas” que não conhecem nada de poesia é enorme. E isso corrompe, na cabeça de qualquer leitor, a imagem do próprio gênero lírico, abrindo espaço para novos aventureiros. No meio desse turbilhão, é realmente difícil separar o joio do trigo. Como muitos dos jornalistas dedicados aos cadernos de cultura não têm, infelizmente, nenhuma bagagem cultural, alguns desses aventureiros acabam conseguindo seus centímetros de fama nos periódicos. E o círculo vicioso, assim, amplia sua rede de danos.


5) – Sendo um representante da poesia mineira, como você vê a relação entre tradição poética e movimentos de vanguarda?

R – Nasci numa pequena e pobre cidade da Zona da Mata das Gerais. Por coincidência, tenho uma relação visceral com o belíssimo patrimônio da literatura mineira. Uma boa parte da minha obra se encontra calcada em minha terra. Na sua gente, na sua história e na sua cultura. Contudo, como disse certa vez Guimarães Rosa, Minas são muitas. E eu não sei ao certo onde começam as Minas em mim, até que ponto eu sou mesmo um “poeta mineiro” ou, em última análise, o que esse rótulo quer efetivamente dizer. Em verdade, estou com o Pessoa: minha pátria é minha língua. Com o Pessoa, bem entendido, não com as pessoas que se aproveitaram da famosa sentença do poeta de Mensagem para fazer uma identificação simplória entre pátria e língua, como lembrou, aliás, com propriedade ímpar, Eduardo Lourenço. Ou seja: afora a língua em que se manifesta, nenhum poeta tem pátria. Não obstante, complicando ainda mais o aforismo pessoano, sou um brasileiro que dobra a esquina do século XX com o século XXI, mas Dante é meu companheiro de copo, T. S. Eliot toma chá comigo todas as tardes, Camões é meu confidente, Safo me telefona de quando em quando, Baudelaire é meu vizinho esquisitão, Borges passeia comigo aos domingos etc. É neste sentido, a meu ver, que deve ser compreendida a relação entre tradição e ruptura, entre tradição e movimentos de vanguarda: uma relação fundada na diversidade e, ainda por cima, eivada de histórias e de diálogos culturais por todos os lados. Afinal de contas, os processos de ruptura têm por base uma aguda percepção crítica da tradição e do momento histórico vigente.


6) – A inovação em termos de poesia é sempre necessária? Existe uma tradição perene em regiões especificas do nosso país, como Minas Gerais e o Grande Nordeste?

R – A inovação é uma virtude inegável. Todavia, há “inovações” que apenas repetem a ótica do mercado: mudam a embalagem, melhoram radicalmente o visual da estampa, mas trazem por dentro o mesmo e velho produto bolorento de sempre. Assim, é importante destacar que a inovação não é a única virtude a ser colocada em foco. No que se refere à tradição das Gerais e do Nordeste, prefiro imaginar que, hoje, o Brasil conta com uma história literária consolidada, do mais alto nível, fato que não existia no início do século passado. Essa tradição não pertence apenas a algumas regiões específicas. Pertence ao Brasil e já se incorporou ao rico patrimônio da língua portuguesa. Pena que a lírica brasileira – de qualidade ímpar – não tenha visibilidade efetiva, pois não é qualquer país que pode apontar para a totalidade de sua história e relacionar os nomes que produzimos apenas no século XX: Bandeira, Drummond, Bopp, Murilo Mendes, Cassiano Ricardo, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Mário Quintana, Henriqueta Lisboa, João Cabral, Mário Faustino, Ferreira Gullar, Affonso Romano e mais um rosário de grandes poetas, alguns infelizmente esquecidos. A despeito de todas as políticas de exclusão, tão cruelmente implementadas no Brasil, erigimos uma literatura notável. Sem embargo, boa parte desse patrimônio desapareceu das estantes das livrarias e até mesmo dos departamentos de Letras das universidades. Poucas são as pesquisas dedicadas à poesia. A natureza desse problema é bem mais complexa do que parece. E as soluções não serão alcançadas com facilidade.



Poemas de Iacyr Anderson Freitas


PAÇO

Sequer ouviram
os tambores daquela noite.

Última
ante a solidão que descia
dos sudários, imperiosa
e fria.

O mar tocava as câmaras nupciais.
Uma aragem macilenta
colhia o inverno nos vidros.

Ao fundo, o anúncio
de províncias findas. A distância
sovada em cada gesto.

Era chegado o incenso, a ceia
escura entre novelos.

As predições
não tinham paço
ou lida.

Contra a luz
baixava o estupor dos cios,
domingos vertiam sangue, árvores
fugiam.

Enfim
o lanho nos tambores:

cruel
o silêncio, cruel

como a luz que singra
o esquecimento.


REGRESSO

Era preciso estar aqui
para tocar
o que resta ainda desta tarde,
com seus quintais, suas casas,
e a mesma e sempre inútil
revelação.

Lembrasse o ano, o minuto
que, visto agora destes campos,
inunda o chão da sala, inumerável?

Sob tais arcadas, nestes flancos
de pedra e cal, ergueram
um casario, uma estação
que exsurge do cascalho
como coisa viva, que tocada fosse
pelos olhos, num assomo.

Embarcadouros de café
(escoando mais que o sumo,
mais que a vertigem, mais que os ossos
ressequidos do assombro e pó,
até um porto
já perdido de seu posto) embarcam agora
a pátina
intumescida desta tarde.

Foi-me inútil estar aqui
neste quintal,
diante
de coisas mortas há muito
– há muito intoleráveis.

Inútil palavra, inútil a letra
que atravessa
este alqueire mínimo do tempo
para fundar outra instância, lume
que também esgota-se de florir

e noutro embarcadouro
se arremessa.

(Do livro Quaradouro. Ed. Nanquin)