sábado, 23 de maio de 2009

Com o prosseguimento de nossa série de entrevistas O QUE DIZEM OS POETAS A RESPEITO DA POESIA, o Blog Poesia Diversa entrevista o poeta Ruy Espinheira Filho, Baiano de Salvador, jornalista, mestre em Ciências Sociais, doutor em Letras e professor de Literatura Brasileira do Instituto de Letras da Ufba, autor de romances, ensaios, novelas, contos e volumes de poesias como Poesia Reunida e Inéditos (Record,1998), A Cidade e os Sonhos (2003), Elegia de agosto e outros poemas (2005; em 2006 – Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras, Prêmio Jabuti – 2º lugar –, da Câmara Brasileira do Livro; Menção Especial do Prêmio Cassiano Ricardo, da UBE-RJ).

Poeta Ruy Espinheira Filho


Entrevista com o poeta Ruy Espinheira Filho



1 – Como ocorreu seu contato inicial com a poesia?

R – Na mais remota infância que posso recordar. Na verdade, a infância já é poesia mesmo.

2 – Como é seu procedimento ao escrever um poema?

R – O poema pode vir de qualquer maneira, a qualquer momento – surgindo inicialmente pelo fim, pelo meio, de forma segura ou extremamente vaga. Como não sei quando virá, escrevo-o da maneira que posso – num caderno, numa folha solta, num guardanapo, onde der.

3 – O que é poesia para Ruy Espinheira Filho?

R – Há incontáveis definições da Poesia e nenhuma é suficiente. Direi que para mim poesia é vida.

4 – Como você vê o atual panorama da poesia brasileira contemporânea? Quais poetas você destacaria?

R – Como em todas as épocas, há bons e maus poetas. Admiro vários e detesto outros tantos. Mas não vou citar nomes. A quem quiser saber mesmo a quantas anda a poesia brasileira, aconselho a leitura de Uma história da poesia brasileira, de Alexei Bueno (ed. G. Ermakoff).

5 – Como você vê a relação entre a tradição e os movimentos de vanguarda no âmbito da poesia? Existe uma tradição perene na poesia?

R – O que chamamos de tradição é a rica herança que recebemos, não somos nada sem ela. Mesmo as vanguardas, que se lançam contra a tradição, fazem parte dela. Aliás, muito daquilo chamado de vanguarda é pura bobagem, como no caso do concretismo, que não produziu nenhum poeta digno deste nome. Manuel Bandeira dizia que o mais que podemos fazer é dar nossa contribuição à tradição. E assim é: recebemos a herança e juntamos a ela nossa própria criação. Gosto muito de uma frase de Eugenio d´Ors: “Tudo que não é tradição é plágio.” Pode parecer um paradoxo, mas para mim nada tem de paradoxal.



6 – Você é um poeta de uma região de grande manifestação poética, o grande Nordeste. Como você vê a relação da poesia nordestina com outras regiões do Brasil?

R – O Nordeste é mesmo um grande produtor de poesia. Tirante certo tipo de poesia regionalista, creio que a relação da poesia nordestina com as outras é tranqüila, todo mundo fazendo poesia moderna, hoje. Digo moderna, não pós-moderna. Penso que essa história de pós-modernidade é só falta do que fazer. Mais uma moda. Recorda-me o Fukuyama anunciando o fim da História... Pelo que tenho observado, ao menos em literatura, o pós-moderno não é mais que um “argumento” para justificar o que não presta. Se um poema, ou um conto, ou um romance, é bobo demais, ou fundamente grosseiro e idiota, certos críticos o “explicam” em nome da pós-modernidade... Já vi esse filme – e é péssimo.




POEMAS DE RUY ESPINHEIRA FILHO


DESCOBERTA

Só depois percebemos
o mais azul do azul,
olhando, ao fim da tarde,
as cinzas do céu extinto.

Só depois é que amamos
a quem tanto amávamos;
e o braço se estende, e a mão
aperta dedos de ar.

Só depois aprendemos
a trilhar o labirinto;
mas como acordar os passos
nos pés há muito dormidos?

Só depois é que sabemos
lidar com o que lidávamos.
E meditamos sobre esta
inútil descoberta

enquanto, lentamente,
da cumeeira carcomida
desce uma poeira fina
e nos sufoca.


O ROSTO NA CHUVA

Esse rosto na chuva
te olha.
É uma chuva longa, uma
de muitos anos e viagens
correndo por esse rosto.

Densa como sangue, chove.
No rosto, outros rostos
cintilam,
gotas esparsas.
Assim casas, cidades, nomes,
animais,
marés do peito abismo.

Esse rosto na chuva
te reflete
com o que a vinda,
vida,
te doou e às vezes inscreveu
tão fundo que lá não desces.

Esse rosto
na chuva que circula
em tuas veias
te punge com mil irresgatáveis
e
áspero cresce
sob a pele suave do teu rosto.


PÊNDULO

Do amplo quintal
onde corríamos
árvores
se enraízam
em nosso peito.

Também dos olhos
nos brotam flores
remotas
pétalas
ilusinógenas.

Como contar
o vento nos
teus cabelos
certos
pássaros e insetos?

(Algo quebrou-se
no carrossel
e saltamos
no ar
para onde só
esperamos:
ontem,
outra vez, um dia.)


OS BENS MAIORES

O que ficou
além do enlace
é o que mais foi
preso pelo gesto.

O que não foi
tocado é o que
deixou sua marca
mais nítida na mão.

A gaiola vazia
é onde habita
o que há de mais belo
em gorjeio e pássaro.


REVELAÇÃO

Só o passado que
aguarda no futuro
revelará a limpidez
maior desta tarde.

Ai que somos felizes
agora
mas não tanto
como amanhã, no passado.


MANE, TECEL, FARES

Nosso banquete não sacia.
Comi o tempo inutilmente
e inutilmente é a única
palavra do epitáfio.

Mais pesada do que a terra
é a espessa pátina de tantos
desejos e outros venenos
que aqui jazem para sempre.

Sobre o peito, sobre o nada
se entrecruzam meus dedos
nus e quebrados por sonhos
cheios de anéis.


RESTO

Como me lembrarás
quando eu partir?
Tenho tantas coisas
e tão pessoais
que não sei dizer
o que desse tanto
malfeliz ou grato
permanecerá.

Talvez fique antiga
oferta de flores
amores-perfeitos
idas margaridas.
Ou somente o jeito
de quando eu passo
pelas ruas longas
que tanto me gastam
sapatos e tudo
muito mesmo tudo.

Com o que de mim
te aquecerás
cada noite funda
cada mágoa vinda?
Ah bem que talvez
nada eu te mereça
de memória saudade.
Nem é impossível
que somente reste
insistência ao frio
no teu coração
desagradecido
e apenas fiel
ao que foi em nós
imperfeito amor.

O POEMA

O poema não
se dá, disperso
no vale,
em setembro, outrora.

O poema se dilui
na brisa, nos
olhos que se voltam
para longe, outro rumo.

O poema se esvai
nos passos que apartam
os que se sentavam
nesta pedra, há pouco,

tecendo um encontro
com extremos cuidados,
lua a lua, flor
a flor, corpo a corpo.

O poema se perde
entre troncos e copas,
estrelas, sóis, êxtases,
remorsos.

Na verdade, nunca
chegou a haver o
poema: apenas
o ingente desejo
de que venha e devore,
neutralize num
canto, essa matéria
decomposta de vida.

sábado, 16 de maio de 2009

Dando continuidade à série de entrevistas - O QUE DIZEM OS POETAS A RESPEITO DA POESIA – Poesia Diversa entrevista a poeta Regina Lyra, residente no Estado da Paraíba, autora dos livros de poesia O livro das Emoções (Ed. Universitária, 1998), Sonhos & Fantasias (Ed. Universitária, 2000), Insensatas Palavras (Ed. Universitária, 2003), Tempo de Encanto (Ed. Universitária, 2004), Atos em Arte (Ed. Scortecci, 2006) e Entre_ Nós (Ed. Universitária, 2008).

Poeta Regina Lyra


Livros de Regina Lyra


Entrevista com a poeta Regina Lyra



1) – Como ocorreu seu contado inicial com a poesia?

RL- A poesia sempre fez parte da minha vida, desde a época da infância, quando meus pais organizavam os filhos e amigos e recitavam poesias. Como sou filha temporã, um dia declamei uma poesia do livro da escola, foi uma festa. Fui tomando gosto pela declamação, na época. Posteriormente, no início da adolescência, comecei a escrever meus primeiros poemas. Gostava muito de declamar poemas, para mim a poesia sempre foi fascinante. Muitos dos meus poemas da adolescência estão publicados no meu primeiro livro – O Livro das Emoções, publicado em 1998.


2) – Quais são suas influências literárias?

RL- As influências são fases da vida, posteriormente selecionamos aquilo que nos toca profundamente e diz o que gostaríamos de ter dito.
Vinícius de Moraes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Pablo Neruda, Os sonetos de Bocage, Augusto dos Anjos, foram leituras freqüentes. Cecília Meireles, os textos de Clarice Lispector são verdadeiros poemas.
As leituras se diversificam, outros autores vão tomando conta da nossa cabeceira: Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, Jorge Luis Borges, Mallarmé, Bertolt Brecht, entre tantos outros.


3) – Como é seu procedimento ao escrever um poema?

RL- Iniciamos um processo da busca do nosso eu poético, cada poema é um grito, um sussurro.
Um protesto, um amor.
Tenho bastante disciplina no ato da criação. Escrevo um poema. Deixo maturar a idéia. O reescrevo até achar que está pronto. Muitas vezes publico e depois ainda quero modificá-lo. É o tempo.

4) – O que é poesia para Regina Lyra?

RL- Poesia é uma escolha de vida. A poesia está em todo lugar. Mas apenas o (a)s poetas a descrevem através dos poemas. Escrever, publicar, tornar-se poeta, ser lido, dizer o que os outros gostariam de ter dito. Isto é a arte poética.

5) – Praticante de uma poesia lírica, como você vê o lirismo nos dias de hoje? Existe espaço para uma poesia lírica pós João Cabral de Melo Neto?

RL- O lirismo jamais acabará. Toma outras formas. A poesia de João Cabral de Melo Neto é uma poesia forte, sofrida. Fala o que o povo sente.
Poetas de hoje, como Afonso Romano de Sant’Anna, tantos poemas líricos escreveu e escreve. Tudo pode acabar, menos o amor. Este supera o tempo e o espaço. Enquanto houver amor, haverá poesia. O amor é a esperança e a busca pela felicidade. Não o lugar comum, mas um amor criativo, superlativo.

6) – Como você vê o atual panorama da poesia brasileira contemporânea? Quais os poetas que você destacaria?

RL- Temos tantos poetas que se destacam nas suas regiões e são totalmente desconhecidos de um Estado para outro, este é o problema de um país continental. A internet quebrou as fronteiras.
No panorama da poesia brasileira vejo muitos nomes, citarei apenas dois: Reynaldo Valinho Alvarez e Adélia Prado.

Regina Lyra
João Pessoa, 04 de maio de 2009



POEMAS DE REGINA LYRA


HIPÓTESE

São tantas premissas
Verdadeiras, falsas,
Inteiras.
Para esclarecer hipóteses
Eventuais
Do amor primeiro
Ou do desejo derradeiro?

Neste limiar absoluto
Dos desejos interruptos
Sentir no coração os apelos
Obsoletos.


ECLIPSE

Quando a Lua se esconder totalmente,
O Sol a cobrirá.

As lembranças chegarão às mentes.
Saberemos o que fomos
E o que somos.

Certamente, a Lua,
De cor dourada
Pelos raios do Sol
Encoberta, naquele instante
Terá momentos de total intimidade.

Neste encontro perfeito,
Os dois gritarão seus feitos,
O orgasmo atingirá todos os membros.
A Lua e o Sol
Chamarão pelos seus nomes
E matarão suas fomes,
No imaginário dueto.


COMO ACORDARÁS?

Sem ver as ancas
E o desejo instalar-se?

Como tocarás mansamente,
Despertado jogo
Apaixonado?

Como manifestarás desejo,
Sem vislumbrar na penumbra
Corpo seminu?

Último abraço na noite,
Último beijo,
Antes de adormecer.

O primeiro a acordar
Os gemidos ao despertar
A retirada rápida da camisola.
Fazer amor,
Desejar bom dia.


ÁRVORE FRONDOSA

A poesia é húmus que provoca frutos.
Ser poeta é algo intenso.

Portanto, o sofrimento
Magoa ao instalar-se.
Mesmo por momentos breves,
O amor se busca.
Encontram-se causa e efeito
Para novos encontros.

No amor descobre-se árvore frondosa:
Com beleza acaricia a essência,
Faz dos seus galhos, caminhos de Paz
E nos torna capazes de superar a dor.


SENTIMENTO MUDO

Palavras não compreendidas.
O silêncio torna-se eloqüente.
Neste mar bravio de gritos e silêncios,
Procuro um tempo de paz,
Que não nos deixe jamais.

Nos gritos emudecidos do meu olhar,
Busco os sussurros dos teus lábios.
Eles andam calados. Sem ter o que falar.
Refazem a mágoa do sentimento mudo.


VIAGEM

O tempo é inexorável.
As lembranças povoam a mente,
A saudade, esta contínua companheira,
Pensa em um passado sem volta.
Mas a lembrança vem junto com a memória,
Por isso grita por um passado alegre,
Perante um presente acanhado
E um futuro incerto
– São sobras.



O MEDO INEVITÁVEL

O medo é marca
De momentos distantes,
Mas, às vezes, está tão perto,
Parece sombra.

O medo do inevitável,
Da perda, do incomensurável,
O medo de ter perdido
O que nunca existiu.

(poemas do livro entre_Nós)

quarta-feira, 13 de maio de 2009

VIAGEM GEOGRÁFICA NO UNIVERSO POÉTICO DE CLAUDIO DANIEL



Egito

SOMBRA, nome
do que cala,
voz de papiro.
Esta é outra areia;
essa, não aquela
estrela. Estou nu
da face ao torso,
e danço outra vez
sobre os caninos.
Hora de dizer
a flor e o grito,
o que nasce em mim
é tua carne escura.
Egito, vem
de teu umbigo
ao meu segredo.



Índia

SÓ A LOUCURA.
Vem, do púbis
às omoplatas,
canta o antigo
sol, sua face
de flama animal
raiando desejosa.
Flor de sândalo,
diz ao tempo:
agora é sempre,
fecha tua asa,
expira em fumo
e cobre. Vêm,
Lakshmi-Naráyana,
flagelar o medo,
fustigar a sílaba
muda, para o
tempo de cristal.




China

NUNCA, olho-
do-mistério,
cauda de pavão.
Larva, nem crisálida;
onde pousa, branca,
em que pétala,
asas em qual flor,
abelha, se o aroma?
O que retine ao sol,
vibra – folha de
peônia – , dedo não
é lua, nem há pó
ou espelho; Cathay,
tudo é vazio, mas
olhe, tanta beleza
e sopra o vento
de outono.


Grécia

UM JOGO de centauros.
Inflama
o trigo da pele;
grita teu olho,
dos pés à cabeça;
teu olho é pele,
teu olho é sol
de sêmen, desfaz
o rosto na água,
acasala tuas éguas.
Depois, lacera-te,
lapida tua boca,
bebe tua urina.
Arde a terra,
arde a carne.
Então, cala bílis
e fleuma; despido
como um deus,
abraça a deusa
do silente mistério.

sábado, 9 de maio de 2009

Prezados leitores, o Blog Poesia Diversa tem por finalidade a divulgação da poesia brasileira em sua diversidade. Iniciaremos com uma série de entrevistas intitulada O QUE DIZEM OS POETAS A RESPEITO DA POESIA e uma seleção de poemas de cada autor entrevistado. Abrindo a série de entrevistas, o poeta Cláudio Daniel, residente na cidade de São Paulo, editor da revista eletrônica Zunái e autor dos livros de poesia Sutra (1992), Yumê (Ciência do Acidente, 1999), A Sombra do Leopardo (Azougue Editorial, 2001) e Figuras Metálicas (Perspectiva, 2005).




Entrevista com o poeta Claudio Daniel



1) Como ocorreu seu contato inicial com a poesia?

Quando li pela primeira vez O corvo, de Edgar Allan Poe, na adolescência, fiquei encantado com a música verbal, a estranheza imagética, o vocabulário inusitado, enfim, com a riqueza sensorial e imaginativa da linguagem do poema. Pouco depois, li uma tradução das Flores do Mal, de Baudelaire, feita por Guilherme de Almeida, que também me causou forte impressão, pelos jogos sinestésicos e pela sonoridade que criava aquarelas quase abstratas. Foi então que decidi ser poeta. Para o desespero de meus pais, que sonhavam para o filho um futuro melhor, como ser engenheiro, advogado ou vendedor de apólices de seguros.


2) Como é seu procedimento ao escrever um poema?

O poema pode surgir do som de uma palavra, como vértebra; ou da impressão causada por uma fotografia ou pintura; pode nascer das imagens de um sonho, de um texto lido, da vontade consciente de criar determinado efeito estético ou ainda de nossas experiências pessoais. Não existe uma fórmula única. De todo modo, acredito nesta sentença de Edgar Allan Poe: “a imaginação é combinatória”, ou seja, o cérebro faz permutações de elementos que existem em nossa memória, e mesmo no inconsciente. A poesia surge de nosso repertório pessoal de leituras e vivências, e exatamente por isso, a meu ver, não se pode separar vida e linguagem.


3) O que é poesia para Claudio Daniel?

Perplexidade, estranheza, mistério, sensualidade, arquitetura, “construção precisa do impreciso” (Poe), diálogo com esmeraldas vivas.


4) É possível diálogo entre a tradição e as vanguardas, ou uma poesia de invenção deve ser necessariamente uma poesia de ruptura?

A tradição nada mais é do que o registro histórico de sucessivas rupturas. Dante hoje é canônico, mas não o foi em sua época, quando participou do movimento do “doce estilo novo”, subversivo não apenas na estética, mas também na ideologia do amor, próxima ao pensamento gnóstico. Escrever a Divina Comédia num dialeto vulgar (que deu origem ao idioma italiano) e não em latim, a língua culta da época, foi um gesto de transgressão. O Fausto de Goethe não é menos inovador, ao romper os limites entre poesia, prosa e teatro, numa linguagem total. A segunda parte do poema, em particular, aproxima-se muito de experiências de vanguarda, e não por acaso foi uma das fontes de inspiração de Sousândrade no seu Guesa Errante. Todo grande poeta dialoga com o passado, inventa uma tradição para si (como dizia Borges) e arremessa o disco mais para a frente, acrescentando alguma coisa ao repertório. Há uma relação dialética entre o passado e o presente de criação, como diz Haroldo de Campos no livro O arco-íris branco; o que é preciso, a meu ver, é saber identificar na tradição o que se tornou obsoleto, pelo uso excessivo, e o que permanece vivo, instigante, desafiador.


5) Como você vê o atual panorama da poesia brasileira contemporânea? Quais poetas você destacaria?

A literatura brasileira sempre foi uma das mais fortes do continente; não é qualquer país que possui autores como Gregório de Matos, Sousândrade, Cruz e Sousa, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Augusto de Campos. Temos uma longa tradição criativa, e mesmo nos momentos de crise, quando parece haver certa estagnação, surge alguma voz interessante, que se destaca pela originalidade. De 2001 para cá, a poesia brasileira tem se relacionado muito com a internet, que facilitou a divulgação dos trabalhos dos autores mais jovens, em blogues e sites de literatura. Vejo uma dicção interessante em alguns autores recentes, como Ana Maria Ramiro, Camila Vardarac, Eduardo Jorge e Leonardo Gandolfi, entre outros. Aliás, publiquei há pouco tempo, em Portugal, pela editora 07 Dias 06 Noites, a Antologia da Poesia Brasileira do Início do Terceiro Milênio, que reúne 18 autores da novíssima geração.


6) Por que a crítica literária tem se mostrado tão alheia ao que se tem feito em termos de poesia contemporânea? Como formar novos leitores de poesia ante a persistência da academia em ignorar a poesia brasileira que é escrita em nosso tempo?

A universidade, durante muito tempo, esteve focada num modelo de cânone que chegava até as primeiras décadas do século XX, ou seja, até Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, como se nada tivesse acontecido de significativo nos últimos 60 anos. Felizmente, esse quadro começa a mudar. Na Universidade de São Paulo, por exemplo, surgem vozes dissonantes que desafiam as limitações do cânone e a leitura sociológica dos textos literários, voltando suas atenções para a poesia contemporânea, com ênfase em seus aspectos estéticos e estruturais: é o caso de professores como Antônio Vicente Seraphim Pietroforte e Roberto Zular, não por acaso dois estudiosos da Poesia Concreta e autores bem-informados sobre a vanguarda internacional. Na Universidade Federal de Minas Gerais, Maria Esther Maciel também tem abordado autores vivos, como Wilson Bueno. Eu poderia citar outros casos, todos eles, sem dúvida, exceções à regra, mas exceções importantes, porque mostram a mudança que ocorre dentro de instituições tradicionalmente conservadoras.

7) E a crítica literária publicada nos jornais?

A crítica que se desenvolve hoje na universidade, a meu ver, é mais aberta, democrática e bem-informada do que a crítica jornalística, que reproduz as relações de poder existentes no meio literário. Os cadernos de cultura da imprensa diária ignoram quase totalmente a poesia contemporânea; suas escolhas de pautas são orientadas não pela qualidade estética de uma obra ou autor, mas pela política e pela relação comercial com as grandes editoras. De todo modo, esse é um fato circunstancial, pois a crítica definitiva é a feita pela história: o que tem qualidade, permanece; o que não tem, será esquecido.


8) Você publicará em breve o livro Fera Bifronte, que ganhou o prêmio da Funarte em 2008; fale um pouco sobre essa obra.

Fera Bifronte reúne poemas que escrevi entre 2005 e 2008, e traz um posfácio de Ernesto de Melo e Castro. O projeto gráfico é do artista plástico e escritor Francisco dos Santos. Os poemas desse livro tratam de temas como a história, a guerra, a morte, o culto ao mercado, a solidão, mas não se trata de uma estratégia naturalista, ao contrário: meu modo de denunciar uma realidade cada vez mais insuportável é subvertê-la pelo exercício da imaginação.


Poemas de Cláudio Daniel



SECADOR DE CABELOS

Um jogo de escorpiões apodrece as horas. Cabelos e olhos para os corvos; fome obscura no couro cabeludo. Toda superfície inquieta-se, em febre surda ou gagueira. Impossível não pensar em jardins de espelhos, cristais de vômito, gravuras de dragão. Folhear revistas de desertos africanos, contemplar as folhas amareladas do outono e pensar em algo profundo que disse Giordano Bruno. Sentir o cheiro vermelho do esmalte, como sangue para coagulação, até um movimento preciso de escova que ceifa a lua com os polegares. All you need is love.
GUARDA-CHUVA

Céu tenso, desatino anfíbio de vogais. Gota após gota, líquidas facas sobre o asfalto, sinfonia monótona de felinos. O tecido de escura tenda árabe, com suas arestas metálicas, pouco resiste ao sonoro impacto das ondas aéreas. Mínimo deslize afasta nossa única defesa, e ficamos vulneráveis como Jonas na goela da baleia; como o exército egípcio no mar Vermelho. Com terror, fugimos, aguardamos o fim do evento, que é eterno, trágico, obsessivo.


SCHOPENHAUER

Água
de nenhum
mar, gema
de extinta mina,
não mais
que o fulgor
de vidros
(cristaleira)
e o viço
de madeira
nova,
lua líquida.
O tempo
lacera
o verde
nos olhos
do gato,
lepra
das flores,
ácido
que corrói
toda cor
ou pele
em escuro
miasma,
peixes
do nada.
Este
é um ofício
doloroso,
uma ópera
ruidosa.
Porém,
tu foste
o tigre.

SÊNECA

Dor é algo
atroz (fungos
violeta). Água
sonora, vai
de uma a outra
concha, ama-
relece (folha
de trevo) e
cai. Diz então,
em que ilha-
olho-de-chama
– Ítaca, talvez –
vesti-me de pele
desolada,
e padeci, fera
entre feras?
Por que, brutal,
me arrasto
nesta terra?
Para a glória
do Sublime?
Por meus débitos,
hora de decepar
vogais? Cala Sibila,
calam Córdova
e Roma, sou todo
farelo, e se fecha
a porta do canto.
Que direi a mim,
após celebrar
o rito da memória?
– Bebe o teu vinho
e aceita o universo,
eis o caminho
da iniciação.