segunda-feira, 2 de novembro de 2009

ENTREVISTA COM O PROFESSOR JOAQUIM BRASIL FONTES

1) No universo acadêmico ainda predomina em sua ampla maioria o estilo monográfico como forma de escrita. Sendo um ensaísta, como você vê o desenvolvimento do ensaio como forma de escrita e sua relação com a Academia?

R. A publicação, em 1580, dos Essais de Montaigne inaugura um gênero e a modernidade; e seu autor tinha consciência disso: referindo-se à aparente desorganização daquele livro singular, ele o compara à decoração em estilo “grotesco”, então no auge da moda, e nele denuncia, ironicamente, a presença de “corpos monstruosos, feitos de diversos membros, sem figura certa, não tendo ordem, nem proporção, a não ser fortuita”. Montaigne sabia estar dando direito de cidade, na escritura, a algo até então excluído do campo da representação: monstros, sonhos e a loucura enquanto elementos constitutivos do “eu”. O gesto que inaugura o ensaio como gênero tenta captar essa matéria inédita, inventando, ao mesmo tempo, o modo de dizê-la: o “ensaio” é um espaço/tempo em que o sujeito da escrita se arrisca perpetuamente.
No universo acadêmico – pelo qual tenho profundo respeito – o saber se constitui e circula de modo diferente. Tomemos como exemplo a filologia e seus métodos, desenvolvidos laboriosamente nas academias oitocentistas: “a Idade Média”, escreve Nietzsche em Humano, demasiado humano (parágrafo 270), “era profundamente incapaz de uma explicação rigorosamente filológica, isto é, do simples “querer-entender” um autor – foi alguma coisa encontrar esses métodos, não os subestimemos! Toda ciência só ganhou continuidade e constância quando a arte da leitura correta, isto é, a filologia, chegou a seu auge”.
Quando penso nessa dicotomia – estilo monográfico/acadêmico – eu me pergunto, em primeiro lugar, se suas fronteiras ainda estão nitidamente demarcadas. Elas não se tornam, às vezes, porosas? Em segundo lugar, me ocorre um adágio dos velhos alquimistas: Lê, lê, lê, e descobrirás.

2) A literatura contemporânea se caracteriza pela presença marcante de ensaístas em suas diversas formas, o mesmo não ocorre com os romancistas. Podemos afirmar que vivemos uma crise do romance? O que caracterizaria essa crise? Quais suas origens?

R. O herói da narrativa épica, uma vez nomeado, estava pronto para agir, e um epíteto costumava explicitar a essência desse sujeito: o Enéias de Virgílio é, desde sempre, pius. Ele encontra diante de si um mundo a ser organizado e é, antes de tudo, aquele que, avançando em território caótico, vence os monstros e funda um espaço propriamente humano. Teseu, vencedor das aporias do Labirinto é o arquétipo dessa figura do heroísmo.
Ora, o herói do romance burguês, quando entra em cena, é ainda um vazio que vai semantizar-se na escrita, às vezes rapidamente: ele encontra um mundo já organizado, com regras e leis já constituídos; um mundo que ele enfrenta, afronta. Desse combate, o herói do romance romântico sai geralmente vencido. Pense no Julien Sorel de Vermelho e o Negro. Lembre-se do Rastignac de Balzac.
Fala-se, hoje, em “crise do romance” como contraponto de uma “ruptura do sujeito moderno”. O que percebo é, também, uma abolição das fronteiras entre gêneros e formas, isto é, a explosão da própria Lei: veja A Paixão segundo G.H., de Clarice Lispector. Muito antes dela, veja o inclassificável Chants de Maldoror, que é de 1869, a Nadja de Breton ou Voyage au Bout de la Nuit, de Céline. Veja Macunaíma.

3) Qual sua perspectiva em relação à escrita fragmentária? O fragmento como forma de escrita (penso em Walter Benjamim) pode ser um novo paradigma em relação à crise do sujeito?

R. Frederich Schlegel, mestre romântico da arte do fragmento escreve: “Um fragmento tem de ser, igual a uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo circundante e perfeito em si mesmo como um porco-espinho”. E Novalis anota à margem desse mesmo fragmento: “O porco-espinho – um ideal”.
Encontrei certa vez, no livro da Antologia Palatina dedicado às oferendas votivas, um epigrama delicioso, no qual o ofertante (imaginário), um certo Kômaulos, coloca no altar de Dioniso um porco-espinho que, “girando sobre si mesmo”, costumava roubar as uvas que secavam nas grades de vime dos bons comerciantes locais. Tudo, nesses versos, me lembra o “modo de ser” do fragmento: o fechar-se em si mesmo, o poder de apoderar-se de outros textos e transformá-los, o movimento vertiginoso da linguagem, o gosto da escrita secreta. Eis o texto, numa tradução minha, livre:

Envolto em armadura eriçada de lanças,
o larápio das grades de vime onde secam
uvas doces; o porco-espinho que, girando
sobre ele mesmo, enrodilhado, costumava
colher os frutos maduros da vide,
a Brô-
mios, deus do vinho, Kômaulos entrega, ainda
vivo, em oferenda votiva.

É preciso insistir sempre no fato de que a escrita fragmentária não é “uma opção estilística”, mas o signo da ruptura do próprio sujeito na escrita: não escreve fragmentos quem quer. Roland Barthes anota, num dos seus belos livros, que “na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor) e diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto. O texto prescreve as atitudes gramaticais: é o olho indiferenciado de que fala um autor excessivo (Angelus Silesius): ‘O olho por onde eu vejo Deus é o mesmo olho por onde ele me vê’”.

4) Em seu livro Eros, tecelão de mitos, somos levados a uma verdadeira saga histórica, simbólica, cultural, lingüística e hermenêutica em busca da identidade literária da poeta Safo de Lesbos. Qual seria a verdadeira face de Safo de Lesbos?

R. Esse livro, escrito há mais de vinte anos, “ acontece” no momento de uma passagem, para mim ao mesmo tempo brusca e temerosa, do universo da literatura francesa oitocentista para para o da Grécia arcaica. Retomando meus estudos de língua grega, eu traduzia, então, uma série de epigramas helenísticos da chamada Antologia Palatina, uma recolha organizada em plena Idade Média bizantina e redescoberta, no início do século XVII, por uma jovem humanista francês, Claude de Saumaise. Interessei-me vivamente pelo Livro XII dessa coletânia, atribuída a um poeta que teria vivido na época do imperador Adriano e se chamaria Stráton de Sardes. Trata-se da Mousa Paidiké, Musa Puerilis ou simplesmente Musa Adolescente. Uma boa tradução seria, talvez: A Musa dos Rapazes. Interessava-me compreender a erótica desses versos de inspiração pederástica (no sentido grego do termo), em sua relação com a escrita do desejo na modernidade e, particularmente, em Gide, Wilde, Genet, Mishima, Foster... tantos outros. Veja o tom dessa epigramática ao mesmo tempo erudita, delicada, mundana e irônica:

De Zeus comecemos, segundo os ditames de Áratos
– a vós, Musas, eu hoje não vou enfadar,
pois, se amo os meninos, se com meninos me deito,
têm algo a ver com isso as Musas helicônias?

A obsessão com a arkhé, “origem ou começo de todos as coisas”, marca o pensamento ocidental em seus primórdios; e de tal forma que, alguns séculos depois de o primeiro filósofo grego ter encontrado esse princípio na água, quando o erudito Áratos, nascido em Soles, na Cilícia, versifica – segundo velhas convenções da poesia didascálica – a astronomia e a meteorologia de sua época, a questão das origens volta a se impor naturalmente, pois àquele que vai falar de estrelas e planetas, de temporais e bom tempo, convém começar com o princípio celeste por excelência, o urânio Zeus, Senhor dos Relâmpagos: “ek Diós arkhómestha”, “De Zeus comecemos”, anuncia o poeta talentoso, elegante e claro, na trama das aberturas codificadas; e se a Musa Puerilis, escrita e ou compilada por Stráton de Sardes, parece inscrever-se, assim, na cumplicidade citacional de uma ortodoxia poética, o desembaraçado licenciamento das Musas, no verso seguinte,

a vós, Musas, eu hoje não vou enfadar

surpreende: de Homero aos menos ingênuos contemporâneos de Stráton de Sardes, sabiam todos os antigos que dessas sublimes mulheres provinha o sopro da divina inspiração: “Vinde, ó Graças delicadas; e vós, Musas de lindas tranças”: não é assim que Safo de Lesbos canta num de seus fragmentos, fazendo, da invocação, palavra poética que advém no seu anúncio – suspiro, súplica ou grito? Não são as Musas obrigatória presença, pouco importa se já num tempo de convenções textuais, na abertura de todo texto épico ou lírico, como lembra Sócrates no Fedro, num movimento discursivo do qual não está ausente, é verdade, a ironia?
Neste umbral, porém, às Musas o epigramatista se recusa a enfadar ou constranger; e é curioso notar o quanto, no contorcionismo sem dúvida sob muitos aspectos mundano desse verso, um começo absoluto se instaura, inscrito embora na segurança dos regimes da tópica antiga: estamos aqui na fronteira de um discurso radicalmente impermeável ao Feminino, quer esteja ele incarnado na potência da Musa sublime, quer se manifeste na própria epiderme, provocando em Stráton de Sardes um desgosto não sei se ali retórico, se aqui visceral.
***

Ora, não sei quem me pôs nas mãos (naquele momento eu já traduzira todos os epigramas do Livro XII da Palatina), os fragmentos de Safo de Lesbos, nos quais mergulhei imediatamente. Teria sido o Deus Acaso? A Musa da Ironia? Hécate, a potência das encruzilhadas?
Ali estava o Feminino em sua plenitude, o inverso da Musa Puerilis.
A poética de Safo de Lesbos: fragmentos, restos (como os dos pré-socráticos) de cantos destruídos pelo tempo, quase ilegíveis na superfície precária – papiro, pergaminho – em que tinham sido traçados há mais de dois milênios. Farrapos. Partituras em farrapos. Em torno de Safo, as imagens, então, reverberavam: a lésbica, a poeta, a grande amorosa. Não sei lhe dizer porque, mas a indagação sobre a poética de Safo abriu-se, para mim, in media res: em pleno século XIX, no momento em que Baudelaire situa a si próprio no alto de um penedo (tradições duvidosas contam que Safo teria saltado, por amor, da rocha de Lêucade), a pique sobre o mar. E eu, como que conduzido por um fluxo de fulgurações poéticas, tentava ainda encontrar uma imagem autêntica, “verdadeira”, de Safo de Lesbos. Ora, sob esse aspecto, a escrita desse livro é, ao mesmo tempo, uma decepção e uma conquista: enquanto as imagens brilhavam, evaporavam-se e reapareciam, o autor (“eu”?), dissovolvia-se também ele e se refazia perpetuamente, numa espécie de angústia que me deixou marcas corporais. E o que tem nas mãos o escritor desse livro, quando chega à suas últimas páginas? Responda, leitor.


5) Qual a importância de uma poeta como Safo de Lesbos para a lírica contemporânea?

R. Safo é a primeira grande lírica do Ocidente. Pound escreveu (à sua maneira deliciosamente brusca) o seguinte, a respeito da prece que a poeta dirige a Afrodite e se abre com o verso poikilóthron athánata Aphródita: “Ninguém chega nunca a produzir muita poesia digna de nota: isto é, no cômputo geral, ninguém produz muita coisa que seja definitiva, e quando não está fazendo essa coisa suprema, quando não está dizendo algo com perfeição e de uma vez por todas; quando não está acomodando poikilóthron athánata Aphródita, ou ‘Hist – said Kate the Queen’, ser-lhe-á muito mais proveitoso fazer os tipos de experiência que lhe poderão ser úteis em sua obra posterior, ou aos seus sucessores”.
A Idade Média conheceu Safo por intermédio de um poema do latino Ovídio, e guardou da grande poeta uma imagem provavelmente lendária: a de uma mulher apaixonada pelo barqueiro Fáon e que, desprezada, teria se precipitado nas águas do mar. (Quase tive a tentação de dizer: “nas águas do vertiginoso mar”.) Safo está presente na poesia francesa do século XVII. E na Itália Renascentista: se você entrar nas loggie papais do Vaticano, encontrará, entre os “grotescos” com que Rafael enfeitou os planos de suas pilastras, um mural com um elenco de poetas. De poetas dos poetas. Entre eles, uma única mulher. Em suas mãos, um papel com o seu nome: Safo.
Lembre-se do famoso quadro de Ingres, “A Apoteose de Homero”: entre os gênios poéticos, antigos e modernos, que cercam o Pai da Poesia, você verá, à esquerda, uma mulherzinha vestida de preto olhando para o espectador da tela. É Safo de Lesbos.
Safo é, além da sua poesia maravilhosa, um maravilhoso mito.
Safo é uma reverberação de imagens.

6) Recentemente, você ganhou o prêmio Jabuti de melhor tradução para Hipólito e Fedra – três Tragédias. Qual sua perspectiva sobre tradução? Para traduzir poesia é preciso ser poeta?

R. O prêmio me surpreendeu, pois a fantasia de ser um tradutor jamais figurou nos meus projetos acadêmicos: meus “exercícios de tradução” finalmente publicados sob seu nome – versões e ou variações em torno de Safo, Mallarmé, Baudelaire; de Eurípides, Sêneca e Racine –, nasceram de uma pergunta, de inquietações, de um devaneio que começaram sempre a pulsar em torno de uma palavra ou verso, ou de um conceito, abrindo, assim, um horizonte de escrita – o da inventio, isto é, descoberta. (Deveria desenvolver e explicar, aqui, esse paradoxo. Infelizmente, não consegui fazê-lo de forma satisfatória).

Em relação à linguagem, o meu ethos é, pois, o do ensaísta e ou ficcionista. Ou o da mistura – no sentido dado ao termo pelos estóicos – desses dois personagens.

Ao aproximar-me do mito de Hipólito e Fedra em suas versões grega, latina e francesa interessavam-me sobretudo as linhas de fuga que desses textos conduziam a três momentos e espaços de capital importância na cultura ocidental: a Atenas do século V a.C., a Roma imperial, a França de Luís XIV. O trabalho concentrou-se inicialmente no texto da Phaedra senequiana, escrito por um dramaturgo que era, também, filósofo, e de linhagem estóica.

Mas, como interpretar os problemas colocados pelo texto em sua língua de origem, sem traduzi-lo, e como traduzi-lo sem proceder-lhe à exegese? E como entrar no território complicado do comentário, sem articular o texto senequiano com o de Eurípides, dramaturgo acusado, por seus inimigos (ontem e hoje), de “filosofar” no palco? E como estudar a um e outro sem traduzir e comentar o Hipólito grego? Montava-se, assim, uma pequena armadilha que conduziria o tradutor a três tragédias antigas presas na trama da intertextualidade, como numa grinalda de flores (permita-me usar aqui uma tópica de tonalidade “alexandrina”).

(Parênteses a partir de um comentário de Benjamin: “Sabe-se que um comentário é algo diverso de uma apreciação moderada, que distribui luzes e sombras. O comentário parte da classicidade de seu texto e, com isso, de um preconceito. O que o diferencia, além disso, de uma apreciação é o fato de que ele concerne unicamente à beleza e ao conteúdo do seu texto”.)


7) Fale um pouco sobre seu livro A musa adolescente e sobre a tradução dos epigramas da antologia palatina.

R. Esse livro, que não sei se é um romance, passou por cinco versões, nas quais tentei acertar algumas contas comigo mesmo, com a tentação do epigrama, com a poesia, e com “as coisas dos amor” ou aphrodísia. É uma espécie de exorcismo. Um livro do qual saí transformado: só muito mais tarde, relendo A Musa Adolescente, compreendi que nele a linguagem havia dado conta, malgré moi, de umas hantises minhas. .

8) Você pretende ainda publicar esses epigramas? Qual a importância da antologia palatina para a lírica contemporânea?

R. Talvez...
A Antologia Palatina marcou toda a lírica do Ocidente, a partir da redescoberta do seu manuscirto na biblioteca do Eleitor Palatino. Você deve se lembrar de que Pessoa traduziu, do inglês, alguns de seus epigramas.

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